“Um papel velho pode estar guardado há muito tempo e não dizer nada, mas se é dado sentido ao que este contém no período em que foi escrito, este papel deixa de ser ‘velho’ e passa a ser um documento para a História da Ciência”. São com estas palavras que Ana Maria Goldfarb e Márcia Ferraz resumem a palestra “Química e Medicina no Século XVII: tesouros no arquivo da Royal Society”, realizada no Instituto de Biociências. Na palestra, foi mostrado o longo caminho da descoberta de um pó alquímico anexado a um manuscrito do século 17 e como este achado relaciona-se intimamente à construção da ciência moderna.
O trabalho de Ana Maria e Márcia faz parte do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência, da PUC de São Paulo, e começou em 2002, com o estudo de um dos fundadores da Royal Society na Inglaterra, chamado Jonathan Goddard. Médico e laboratorista, Goddard foi um dos precursores das práticas associadas à revolução científica ocorrida entre os séculos 17 e 19, da qual a Royal Society foi uma das incentivadas. Nesta mesma época, grandes nomes como Robert Boyle e Isaac Newton também participaram da edificação de um novo paradigma do mundo ocidental.
O labirinto da descoberta
A jornada começa a partir de um documento no qual o médico Jonathan Goddard recomenda aos membros da Royal Society de Londres a transcrição para arquivar a receita de uma substância, o alkahest. Muito procurado na Europa medieval, o alkahest seria uma ubstância capaz de dissolver qualquer material em suas partículas mínimas e em geral era mencionado apenas em tratados mais esotéricos. Como havia discrepância entre a temática e os registros oficiais, foi levantada a hipótese de que tal receita pudesse estar relacionado aos arquivos pessoais de Goddard.
Ana Maria e Márcia procuraram os documentos gerais da Royal Society nos livros de registro dos debates da época, a fim de contextualizar os estudos do médico. Segundo as pesquisadoras, grande parte das mortes na época estava relacionada à doenças que hoje atribuímos aos rins e vesícula. Neste mesmo período, o sistema linfático acabara de ser descoberto e hipóteses relacionando-o com os “males das pedras” foram levantadas. Com a atenção voltada aos registros das reuniões da Royal Society, um de seus primeiros presidentes, Henry Oldenburg, apresenta uma memória na qual comenta sobre certo alkahest animal, fazendo referência novamente à Goddard.
Neste documento, ele riscara um trecho, o qual substituiu por uma citação a respeito de um médico germano chamado Colhan. Na segunda metade do século 17, o alkahest estava ligado principalmente à Joan van Helmont, alquimista que teria a receita deste solvente universal. Porém, como seria possível armazenar um material que teria a capacidade de dissolver qualquer substância? A resposta vem do próprio van Helmont: haveria determinado material com a propriedade de incorporar-se ao alkahest sem dissolver-se, motivo do próximo passo das pesquisadoras.
Na foto, o pó alquímico encontrado anexado à carta de Boutens a Oldenburg (Fonte: Ana Maria Goldfarb)
Ao cruzar documentos, foi descoberto que o tal Colhan era amigo do filho de van Helmont, que teria cedido a receita do tal solvente. A importância do médico no quebra-cabeça reside em uma tese que publicara: ele relacionou a linfa à função de dissolver as “pedras” do organismo, um dos grandes problemas de saúde da época. Além disso, foi verificado que Colhan teve contato com contato com Oldenburg e, provavelmente foi através dele que a receita recomendada por Goddard chegou à Royal Society.
Já em 2009, as pesquisadoras começaram a procura de documentos que pudessem desvendar a autoria da receita encontrada nos arquivos da Royal Society. Durante a busca foi encontrada uma lista de experimentos feitos na época e entre estes, havia algumas citações relacionando o sistema linfático ao solvente de van Helmont. Procurando entre cartas trocadas por Oldenburg com outros estudiosos da época a respeito de documentos relacionados a Colhan, foi encontrada uma série de correspondências entre ele e o alquimista Augustin Boutens, que prometia receitas e materiais para cura dos “males das pedras” em troca de livros científicos.
Em meio as correspondências, a grande descoberta: um pó alquímico embrulhado estava guardado intacto há centenas de anos nos arquivos da Royal Society. Segundo Ana Maria e Márcia, a surpresa foi enorme para todos e elas acreditam que o pó amarelado que está dentro do pacote seria na verdade a combinação ideal do alkahest com ludus helmontiano, material secreto que seria o recipiente perfeito para o solvente. De tal combinação, acreditava-se ser possível produzir um remédio universal, capaz de curar todos os males.
Da descoberta do sistema linfático até o preparo de remédios, Márcia aponta que na época Medicina e Química estavam intrinsicamente ligadas, pois, “se fosse possível criar em laboratório alguma coisa parecida com a linfa, teria-se o alkahest para fazer as fórmulas magistrais”. O verdadeiro labirinto de documentos do qual as pesquisadoras fizeram muitos anos de pesquisa ainda não foi ao todo solucionado: ainda falta descobrir o porquê de tal substância, tão cobiçada, ter sido negligenciada em mais de 350 anos de História da Ciência.
O nascimento da ciência moderna
A importância da receita do alkahest reside em sua forma: curta, simples e direta, ao contrário de outros documentos da época em que para a mesma receita eram escritos longos tratados descritivos.
Salão de pesquisa da Royal Society (Fonte: Joanna Hopkins / Royal Society)
A ideia de que o nascimento da ciência rejeita as práticas antigas parte do século 19. Entretanto, a receita encontrada demonstra a aplicação de certo rigor científico à temática dita medieval. Porém, através do estudo dos registros históricos “confirmamos que uma série de conhecimentos tradicionais continuavam sendo estudados junto aos ideais da ciência moderna”, explicam as pesquisadoras.
Até o século 19, por exemplo, não havia balanceamento de equações químicas, que só seriam acrescentados aos procedimentos laboratoriais a partir da matemática do século anterior. O registro dos debates ocorridos no início da Royal Society e cartas de Goddard a respeito do alkahest mostram como surgiu a necessidade de se criar um padrão laboratorial, a fim de que pudessem ser encontrados resultados semelhantes, independentemente das circunstâncias. Portanto, a revolução na Ciência não ocorreu de maneira abrupta, mas sim, através da convivência entre passado e futuro.