São Paulo (AUN - USP) - Surgido entre os séculos XVIII e XIX, o discurso da saúde pública tem estado, no último século, atrelado à noção de risco. De fato, é comum ouvirmos falar em grupos ou comportamentos de risco quando estão em pauta as políticas públicas de saúde. Mais recentemente, sob o impacto da epidemia mundial de Aids, a pesquisa e a prática em saúde pública têm sido influenciadas por outro discurso nascido no mesmo contexto – as revoluções burguesas e o nacionalismo – o dos direitos humanos. Ao pensar a saúde por essa ótica, não se fala em comportamentos de risco, mas em vulnerabilidade, que pode ser ocasionada pelo desrespeito aos direitos humanos de um indivíduo.
Um expoente deste campo de pesquisa é o trabalho realizado pelo professor Ivan França Junior, do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Desde 1997, Ivan vem trabalhando ao lado dos professores José Ricardo Ayres e Vera Paiva na investigação das relações entre saúde pública e direitos humanos.
Um dos aspectos estudados pelo grupo da FSP é o dos direitos reprodutivos de portadores de HIV, abordado em artigo a ser publicado em breve. Além disso, deverá ser repetida uma pesquisa, originalmente realizada em Porto Alegre, sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes que ficaram órfãos por causa da Aids. Em São Paulo, o trabalho, aprovado pela Fapesp, deverá ser mais abrangente do que o original, que se limitou ao direito ao convívio familiar.
Vulneráveis
A relação principal entre o campo da saúde e os direitos humanos está na noção de vulnerabilidade, proposta pelo grupo liderado pelo sanitarista Jonathan Mann, na Escola de Saúde Pública de Harvard. Com a expansão da epidemia de Aids, notou-se que as pessoas que não têm um conjunto de direitos sociais (habitação, educação, saúde) assegurados acabam tendo mais chances de contrair o HIV. Não ter acesso à informação ou aos meios de prevenção, explica Ivan, “coloca essas pessoas em uma situação em que elas estão mais vulneráveis à transmissão da doença”.
Além dos direitos sociais, direitos políticos e civis, como o direito à liberdade, à informação, à livre organização social e à não-discriminação, também podem estar envolvidos em uma situação de vulnerabilidade. “Não é por acaso que em países com baixa organização democrática, a epidemia se dissemine rápida e extensivamente, como é o caso da China e de vários países da África”, conclui o professor. Outro exemplo nesse sentido é o de pessoas discriminadas sistematicamente em um contexto social. Grupos como negros e homossexuais têm menor acesso à informação ou a outros recursos, o que as leva a ter menos chances de se proteger de uma epidemia como a da Aids.
Novos horizontes
Apesar de a discussão da saúde pública aliada aos direitos humanos ter sido acordada pela explosão da Aids, hoje existe um impulso para que as investigações acerca da vulnerabilidade sejam estendidas para outras questões. Ivan cita o abuso sexual na infância. Os pesquisadores da USP tentam determinar quais os fatores que fariam uma criança mais ou menos vulnerável a sofrer abusos: “Todos somos até certo ponto vulneráveis, mas nem todos acabamos vivendo essa mesma situação. Procuramos determinar exatamente onde está essa diferença”. A lógica dos direitos humanos está sendo aplicada ainda em um estudo sobre cárie dentária, realizado ao lado de um grupo da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto.
O Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP mantém o Projeto Gênero, Violência e Direitos Humanos – Novas Questões para o Campo da Saúde. O projeto trata de assuntos como pré-natal e amamentação, abordados na cartilha “O que nós como profissionais de saúde podemos fazer para promover os direitos humanos das mulheres na gravidez e no parto”. Segundo Ivan, o maior desafio ao estudar as interações entre as práticas de saúde pública e o discurso dos direitos humanos é desenvolver a linguagem para estabelecer esse diálogo. “Como eu venho da saúde, meu esforço vem sendo para me apropriar dessa linguagem [do Direito], que de fato é uma linguagem diferente”, coloca.
A prevenção da Aids continua sendo um dos focos principais dos trabalhos com saúde e direitos humanos. Ivan afirma que o esforço é por criar uma “cultura da camisinha” consolidando as práticas preventivas como parte da rotina da população, especialmente dos jovens. Um estudo nacional sobre o uso de camisinha por jovens colocou o Brasil ao lado de países europeus e dos EUA: 60% dos jovens de 15 a 24 anos questionados afirmaram ter usado preservativo na última relação. Na avaliação do professor, o número indica que o discurso da vulnerabilidade vem sendo incorporado de maneira positiva às políticas públicas em saúde no Brasil.
Ivan França Junior é médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com mestrado e doutorado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP – ifjunior@usp.br