Os brasileiros, ao mesmo tempo em que não se consideram racistas, admitem a existência de racismo em suas relações interpessoais, é o que constata Vinícius Mota de Jesus em sua Dissertação de Mestrado “Do silêncio ao Estatuto da Igualdade Racial: os caminhos da igualdade no direito brasileiro”, defendida na Faculdade de Direito da Usp. Nela o pesquisador afirma que o Estatuto da Igualdade Racial, publicado em julho de 2010, estabelece diversas medidas com o intuito de se combaterem as desigualdades e as discriminações raciais que recaem sobre a população negra de nosso país. Considera que as ações afirmativas propostas no documento são o principal instrumento do Estatuto para atingir o seu objetivo, qual seja, “promover a construção de uma sociedade equilibrada sob o prisma dos grupos raciais, considerando tanto a necessidade de distribuição justa dos bens sociais como o respeito a cada um dos grupos raciais”.
Destaca, entretanto, que o Estatuto, no título dos direitos fundamentais, mais especificamente no capítulo que trata dos meios de comunicação, tem enfrentado “a invisibilidade gritante do negro na televisão e nas peças publicitárias em geral”. Nesses meios, o branco tem sido tratado como representante legítimo e natural da humanidade, ao passo que o negro aparece como um ser exótico e, portanto, ausente ou presente apenas em papeis pontuais.
Por outro lado, apresenta aspectos da realidade racial brasileira, em especial aquilo que denomina de “silêncio eloquente”, ou seja, a omissão do Estado diante das dificuldades enfrentadas e vividas pela população negra desde o período republicano aténossos dias: “em relação àcontribuição do negro para a construção do Brasil, como agente de trabalho quase exclusivo por mais de três séculos, bem como sua contribuição para formação de nossa cultura, houve profundo silêncio”.
Recentemente, no dia 16 de junho de 2014, o Ministro da Educação, Henrique Paim e o presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), Chico Soares, publicaram o perfil dos candidatos inscritos no ENEM 2014. Um dos dados que chama a atenção foi o acréscimo de mais de um milhão de participantes negros em relação ao ano anterior e 57,91% do total de inscritos declararam-se negros. Henrique Paim atribui o aumento expressivo à política governamental presente na Lei das Cotas, que tem despertado o interesse dos “jovens negros” em concorrer a uma das vagas a eles destinadas por meio do SISU (Sistema de Seleção Unificada), ou mesmo do ProUni (Programa Universidade para Todos).
Entretanto, o sistema de cotas raciais foi um dos pontos mais controversos e debatidos na fase de discussão do projeto inicial do Estatuto da Igualdade Racial. Assim como outros pontos considerados importantes, foi excluído do texto final, publicado em julho de 2010: nele optou-se por um dispositivo genérico ao estabelecer que o poder público devesse adotar programas de ação afirmativa. Dois anos após a edição do Estatuto, entretanto, a Lei nº 12.711/2012 retoma o tema, estabelecendo a adoção de cotas sociais e raciais (50% das vagas) para o ingresso em instituições federais de nível superior, hoje implantadas em todo o país através do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Mota de Jesus, em seu trabalho, corrobora o resultado da pesquisa feita em 1988, em São Paulo, com o objetivo de entender como os brasileiros definiam o racismo vigente no seu país, cem anos após a Abolição da Escravatura. Conforme publica Lilia Moritz Schwartcz, em sua obra Racismo no Brasil (2001), 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito e, paradoxalmente, 98% deles disseram conhecer, sim, pessoas e situações que revelavam a existência de discriminação racial no país: “todo brasileiro parece se sentir uma ‘ilha de democracia racial’, cercado de racistas por todos os lados”.
Apesar das profundas modificações havidas no projeto original, o Estatuto da Igualdade Racial pode ser considerado uma importante ferramenta para superação do racismo. Não deve, porém, ser “o momento final na luta contra a discriminação, ao contrário, deve ser revisto como um recomeço”. Constitui, na verdade, a primeira iniciativa com potencial para iniciar, de fato, a “correção de distorções decorrentes da escravidão, da indiferença republicana e das medidas universalistas inócuas diante da persistência do desequilíbrio entre os grupos raciais”.