O crescimento econômico brasileiro e as consequentes expansão e diversificação de postos de trabalho em determinadas regiões, em especial no Centro-Sul do país, em detrimento de outras regiões mais carentes, têm fomentado a migração de trabalhadores em busca de emprego. Alguns setores da economia, como a agricultura e a construção civil, caracterizam-se pelo trabalho sazonal ou transitório, exigindo constante deslocamento da mão de obra para novos postos de serviço, surgindo daí a figura do trabalhador migrante.
Em sua tese de Doutorado, apresentada à Faculdade de Direito da USP em 2013, Silvio Beltramelli Neto aponta a existência de um conflito entre o direito à moradia, em seu conceito mais amplo demoradia adequada, e a situação precária de habitação de grande parte dos trabalhadores migrantes do Brasil, defendendo, na relação trabalhista, a amplitude da obrigação patronal no sentido de oferecer moradia digna ao trabalhador migrante “independentemente de qualquer prévia deliberação normativa específica ou jurisdicional a esse respeito”.
Na história da sociedade capitalista, a necessidade de migrar em busca de emprego por melhores condições de vida fez desse fenômeno “uma contingência natural, tantas vezes exaltada em nome da prosperidade individual, apesar dos inevitáveis sacrifícios pessoais”, afirma o pesquisador. Nesse contexto, a condição de habitação passou a ser tratada como resultado do sucesso ou do insucesso pessoal e, em alguns casos extremos (o caso dos habitantes de rua, por exemplo), como assunto de política pública.
No entanto, o fato de haver pessoas submetidas a condições aviltantes de moradia durante a vigência do contrato de trabalho temporário não pode ser tratado como uma “contingência natural”, pois a condição de habitação não pode restringir-se ao mérito pessoal ou à capacidade individual: é um problema social que deve ser tratado sob a ótica do princípio constitucional do direito à moradia.
Segundo constata Beltramelli Neto, a jurisprudência somente tem exigido que o empregador forneça moradia adequada ao empregado que migra de seu local de origem para o local de trabalho, quando há iniciativa patronal em oferecê-la. Na maioria dos casos, porém, não existe um vínculo contratual de moradia entre patrão e empregado, beneficiando-se o empregador do processo social de migração, “dada a disposição do migrante em custear seu pouso transitório, alavancada pela premência do sustento não garantido no local de origem”. Assim, os empregadores têm sido omissos em oferecer moradia aos funcionários nessa condição e o Poder Judiciário, por seu lado, não os obriga a tal, a não ser se “constatado liame fático entre o empregador e a moradia ocupada pelos empregados”.
No entanto, Beltramelli Neto avalia em sua pesquisa que, sendo o direito à moradia um princípio constitucional,o aplicador do Direito deverá, na medida do possível, perseguir a sua realização, a sua “efetividade”, inclusive no contexto do vínculo empregatício, “ainda que nesse não encontre seu fundamento jurídico, porquanto, em sendo direito da personalidade, é extracontratual o seu alicerce”. Em outras palavras, mesmo que o contrato de trabalho estabelecido entre patrão e empregado não expresse a obrigação de fornecimento de moradia adequada ao migrante por parte do empregador, as decisões judiciais deveriam ampliar a abrangência dessa obrigação, conferindo efetividade a esse direito humano fundamental.
Embora a inserção do direito à moradia no contrato de trabalho possa “suscitar colisão entre aquele direito fundamental e o de proteção à propriedade do empregador”, no caso específico do trabalhador migrante temporário, conclui Beltramelli Neto, o direito de moradia prevalece sobre o direito de proteção à propriedade, havendo razões, de fato e de direito, suficientes que justificam essa precedência, o que fundamenta uma obrigação jurídica válida do empregador: a de oferecer, gratuitamente, moradia adequada durante a vigência do contrato de trabalho de natureza transitória.