ISSN 2359-5191

18/09/2014 - Ano: 47 - Edição Nº: 62 - Economia e Política - Escola Politécnica
“Ecossistema inovador” surge no horizonte do setor elétrico brasileiro
A proposta de política científico-tecnológica para o setor visa contribuir para a inovação e desenvolvimento de novas tecnologias
Inovação e desenvolvimento tecnológico ainda são incipientes no setor elétrico brasileiro. Fonte: Divulgação

Regulamentado pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), o setor elétrico brasileiro já passou por importantes mudanças e melhorias no que concerne à política de desenvolvimento científico e tecnológico. No entanto, esta política ainda se mostra pouco eficaz na geração de inovação, por estar baseada em pressupostos teóricos ultrapassados, que não reconhecem a dinâmica atual do desenvolvimento tecnológico. Assim, transformações mais profundas nesta política e uma reestruturação do sistema são necessárias para que o setor evolua e avance qualitativamente. Em um estudo desenvolvido no Departamento de Engenharia de Produção da Poli (USP), o pesquisador Guilherme Soares Gurgel do Amaral analisa a atual configuração do setor elétrico brasileiro e propõe um novo modelo de formação para a política científico-tecnológica.

Segundo Amaral, ao longo da História surgiram duas grandes correntes que tentaram explicar e identificar por quais processos ocorre a inovação tecnológica e o surgimento de novas tecnologias. A primeira delas é o modelo mais tradicional, que interpreta o desenvolvimento tecnológico como um elemento exógeno (externo) à atividade econômica. “Isso significa que, segundo esta teoria, o processo de invenção deve ocorrer fora das atividades empresariais, e ser posteriormente incorporado através de produtos e tecnologias livremente disponíveis em um mercado”, explica o pesquisador. “Então, por meio de uma relação contratual, as empresas seriam capazes de comprar o conhecimento, para depois incluí-lo na sua estrutura produtiva”.

Esse modelo tradicional desencadeou uma abordagem de políticas públicas científico-tecnológicas baseada em uma metodologia linear. Dessa forma, os fluxos de conhecimento são bem estabelecidos: a inovação começa na pesquisa básica, depois caminha para a pesquisa aplicada, desenvolvimento de produto conceitual, protótipo tecnológico, e todas as outras etapas até chegar no mercado. O papel do poder público nesse processo é outro aspecto bem delimitado no modelo linear, pois o financiamento do ensino e das pesquisas universitárias passa a ser responsabilidade do Estado, enquanto que a transformação desse conhecimento em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) fica a encargo das empresas privadas.

Já a segunda grande corrente teórica, desenvolvida na década de 80 e conhecida como “Teoria evolucionária do conhecimento econômico”, tem uma interpretação diferente dos processos de inovação tecnológica. Nessa teoria, o desenvolvimento tecnológico é considerado um elemento endógeno à atividade econômica, ou seja, é fruto dela. Assim, ao invés de algo externo que é incorporado às empresas, a inovação passa a ser vista como um processo interno de busca por diferenciação no mercado e consequente aumento dos lucros. Amaral ressalta, no entanto, que para estabelecer esse processo inovador nas empresas é necessária a criação de um sistema, em que a relação complexa entre diversos atores e a troca de informações ocorreriam de forma não linear. “Fazendo uma analogia com o desenvolvimento ecológico, o mercado é como uma grande floresta, em que as empresas são células e as inovações tecnológicas, mutações. Então, o sistema funciona da seguinte forma: as empresas recebem e geram informações, e a partir dessa troca surgem as inovações. Estas, por sua vez, são selecionadas em um ambiente de competição, de acordo com sua maior ou menor adequação ao mercado”, explica o pesquisador.

Ainda na perspectiva evolucionária, o Estado e as políticas públicas científico-tecnológicas assumem um novo papel. Ao invés de apenas financiar as pesquisas acadêmicas nas universidades, eles passam a intervir em todas as etapas da cadeia: fomentando e coordenando a relação entre os agentes, suprindo lacunas e falhas de mercado e fortalecendo o sistema tecnológico e de inovação.

O setor elétrico brasileiro, segundo Amaral, adota hoje o modelo linear de desenvolvimento tecnológico. Então, enquanto o Estado supostamente cuidaria das pesquisas acadêmicas, as empresas deveriam investir em P&D. “O problema é que isso não acontece. O mercado do setor elétrico, assim como de outros serviços públicos, não apresenta um quadro de concorrência e competição, o que desestimula as empresas a investir em melhorias e em tecnologia. A inovação, além de um processo caro, é também arriscado. Portanto, não há uma perspectiva de ganhos suficientes para compensar esse risco”, declara o pesquisador. Dessa forma, algumas mudanças na legislação e regulamentação do setor surgiram ao longo dos anos, a fim de reverter esse cenário e incentivar as empresas a investirem em inovação tecnológica.

A primeira medida adotada, no ano de 2000 foi a criação da lei 9.991, que obriga todas as empresas do setor elétrico a reservar 1% da sua receita operacional líquida para investimentos em P&D. Como se fosse um imposto, as organizações gastariam esse dinheiro em projetos escolhidos por elas, e depois prestariam contas à Aneel, provando o seu investimento. A medida, no entanto, mostrou-se ineficiente, pois muitas empresas aplicaram incorretamente o capital e não se apropriaram do conhecimento investido. “Nesses quase 15 anos de política dessa lei, mais de R$15 bilhões já foi gasto pelas empresas e pouco resultado foi obtido. Com a baixa interação entre os agentes do sistema e as empresas fornecedoras de tecnologia, a maioria dos recursos acabou sendo destinado às universidades. O problema é que uma parcela muito pequena das pesquisas foi efetivamente transformada em produto e tecnologia”, esclarece Amaral.

Entre os manuais de 2006 e 2008 da Aneel, três mudanças fundamentais foram estabelecidas nos processos de regulamentação e validação dos projetos de P&D do setor elétrico, a fim de ampliar a eficiência da lei. A primeira delas foi o aumento do risco regulatório. Por ser um setor em que o preço do produto é regulado pelo Estado, ou seja, é ele quem determina até quanto as empresas podem cobrar pela energia elétrica, elas têm que compor seu lucro sobre esse preço. Assim, elas são induzidas a minimizar seus custos, e uma das maneiras de fazer isto é diminuir o risco regulatório, de forma que elas não possam ser penalizadas sob nenhuma circunstância. “Em um primeiro momento, as empresas tinham um risco regulatório muito baixo. Elas faziam uma lista de projetos nas universidades e entregavam para a Aneel, indicando em quais deles pretendiam investir. Então, a Aneel aprovava, a priori, um ‘ciclo de P&D’, válido por um ano. O problema dessa aprovação prévia é que, se os projetos não resultassem em inovação tecnológica, o recurso investido não poderia ser posteriormente invalidado”, explica Amaral. “Com o manual de 2008, a Aneel mudou o seu método de avaliação de projetos, passando a validá-los como recurso de P&D apenas no final. Essa medida aumentou o risco regulatório, e como consequência aumentou também o custo de gestão dos projetos, que se tornaram mais criteriosos”. Entre os benefícios que essa medida promoveu estão a melhoria nas empresas, a criação de departamentos exclusivos de P&D e a contratação de profissionais especializados para acompanhamento da execução dos projetos.

A segunda mudança estabelecida pela Aneel foi a permissão concedida às empresas para se apropriarem, em parte, do recurso obtido com P&D, ao invés de repassá-lo integralmente ao consumidor, como era feito anteriormente. Assim, se a empresa conseguisse reduzir seus custos ou aumentar a sua receita através de algum projeto desenvolvido em P&D, esse valor seria reduzido da deflação de preços estabelecida pela Aneel nos anos seguintes. “Então, essa medida permite que a empresa tenha lucros ainda maiores do que teria, quando a inovação tecnológica gera ganho para ela”, diz Amaral.

A última mudança entre as mais importantes no marco regulatório do P&D foi a ampliação de possibilidades de investimento para as empresas. Antigamente, a Aneel só permitia que o dinheiro público fosse empregado nas pesquisas básica e aplicada, etapas da inovação tecnológica que ocorrem predominantemente nas universidades. A partir do manual de 2008, esse investimento passou a ser permitido em todas as etapas até o lote pioneiro (primeira fase de testes pré-comerciais), quando o processo já está quase na fase de escalonamento industrial. “Isto foi um grande avanço, pois permite que as empresas gastem dinheiro para além dos muros das universidades. Elas podem, por exemplo, investir em empresas menores para desenvolvimento de protótipos, o que gera conhecimento, emprego e aquece a economia”, defende Amaral.

Apesar de todas essas melhorias, a política científico-tecnológica continua baseada no modelo linear tradicional, e por isso ainda é ineficiente na criação de um sistema setorial de inovação. “O grande erro da nossa política é acreditar que basta gerar conhecimento nas universidades, que ele irá fluir automaticamente para a atividade empresarial, resultando em inovação tecnológica”, explica o pesquisador. O Brasil hoje é responsável por 3% de toda a produção científica e acadêmica do mundo, ao passo que representa muito menos de 1% das patentes e inovações mundiais. “A política continua fracassando em estabelecer essa ligação entre a pesquisa, feita nas universidades, e o desenvolvimento tecnológico, que ocorre nas empresas. Assim, a construção de um ‘ecossistema inovador’ – ou um sistema nacional de inovação – é necessária para que se crie um ambiente propício à emergência de novas tecnologias”, afirma Amaral. Isso significa estruturar e interligar um conjunto de fatores: universidades fazendo pesquisa, empresas de base tecnológica que transformem essa pesquisa em tecnologia, institutos de pesquisa aplicada públicos ou privados, e também empresas que se relacionem com todos esses agentes e se apropriem desse conhecimento, através de estímulos de mercado. “Somente com essas mudanças estruturais será possível a criação de um verdadeiro e desenvolvimento tecnológico no setor elétrico brasileiro.”

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