A maioria dos manuais de direito apresenta uma abordagem em descompasso com a dinâmica de implementação das políticas públicas: a forma estática de análise adotada nos manuais não explica a realidade dinâmica dessas políticas, tampouco é capaz de revelar como elas se estruturam cotidianamente. A compreensão do papel do direito na implementação das políticas públicas, a partir do estudo de caso do Programa Bolsa Família, é o tema abordado por Flavia Xavier Annenberg em sua dissertação de mestrado, defendida na Faculdade de Direito da USP, em 2014.
Uma possível explicação para esse descompasso é o modelo não só de ensino como também de pesquisas jurídicas adotado na maior parte das faculdades de Direito, que “oferece pouco espaço para a formação voltada ao estudo, à investigação e à elaboração de políticas públicas e programas de ação governamental”, explica Flávia. Outra justificativa deste distanciamento está no fato de que a sistematização do direito costuma ser pensada a partir do mundo do dever ser, de tal forma que o “contato com a realidade se dá mais por meio da palavra do que pelo trabalho de campo”.
A pesquisa mostra também que, frequentemente, a postura dos juristas leva a esse descompasso entre os manuais e as políticas públicas: "o distanciamento de estudos empíricos – ou, em outras palavras, a falta de costume de 'sujar as mãos' por parte de juristas acadêmicos e práticos – está diretamente relacionado ao descompasso entre as categorias descritas em manuais e a realidade das políticas públicas. Afinal, é impossível descrever fielmente algo que não se vê de perto."
Flávia estudou as transformações pelas quais passou o Programa Bolsa Família para estabelecer essa relação entre o direito e as políticas públicas: "é um caso ilustrativo do fato de que categorias do direito administrativo, ao menos do modo como tradicionalmente apresentadas, oferecem poucas ferramentas para compreensão, elaboração, pesquisa e avaliação de políticas públicas de forma geral”.
A análise do Bolsa Família demonstra que as necessidades da implementação do programa são opostas ao pensamento tradicional do direito administrativo que, antes de possibilitar uma ação administrativa mais inovadora, preocupa-se em estabelecer aquilo que não é permitido. A pesquisadora explica que o programa "se opõe a essa racionalidade porque os gestores do programa buscam explorar diferentes formas de realizá-lo, o que se expressa nas três alterações consecutivas da forma de gestão das condicionalidades e na criação do Índice de Gestão Descentralizada, mudanças que ocorreram aos poucos por atos gradativos internos à administração”. A pesquisa revela que houve uma mudança gradativa na racionalidade das condicionalidades do programa, identificando a migração de um formato em que o descumprimento gerava sanções mais rígidas para um modelo de estímulos que visam tanto assegurar os direitos dos beneficiários à educação e à saúde quanto alertar o Poder Público sobre as situações de maior vulnerabilidade.
Esse estudo do Bolsa Família é um indício da necessidade dos juristas analisarem com atenção o descompasso entre os manuais do direito e a realidade concreta. Os manuais não apenas são de pouca utilidade para descrever o que tem acontecido no decorrer da implementação de um programa social, como também levam a "um desestímulo à utilização de testes no decorrer da implementação, pois a aposta em tentativas e erros faz uso de um experimentalismo que, da perspectiva jurídica tradicional, deve ser contido”.