São Paulo (AUN - USP) - A palestra “ AIDS, Trauma e Cultura”, realizada no dia 4 deste mês no Instituto de Psicologia (IP) da USP, procurou discutir a AIDS como manifestação estética e política. A epidemia surge na década de 80, em uma época em que a arte contemporânea lidava com questões como o uso do corpo como material artístico e o silêncio perante a dor. Politicamente, ela foi tratada com silêncio pelos governos, que continua até hoje.
O debate reuniu pela primeira vez dois laboratórios do IP: o Nepaids (Núcleo de Estudos e Prevenção da AIDS) e o Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte. Para esse debate foram convidados o professor Robert Semper, da Columbia University, e o professor João Frayze-Pereira, do Instituto de Psicologia.
Na primeira parte, conduzida por Semper, o tema foi a ética e a produção cultural sobre a AIDS, tomando como exemplo a África do Sul, o país com a maior proporção de população soropositiva do mundo. A epidemia surgiu nesse país durante o processo de redemocratização e fim do apartheid.
O professor falou sobre como o contexto histórico determina o corpo da experiência, especialmente no caso do sofrimento dos oprimidos. A forma de resistência cultural usada pela África do Sul na política passou a ser usada na sua luta contra a AIDS. A reconstrução da identidade nacional se deu com a valorização da tradição, moralidade e do afrocentrismo. Assim, há grupos conservadores, quase fundamentalistas, que defendem os valores africanos e querem abolir tudo o que remete ao período de colonização europeu, como se quisessem apagá-lo da memória do país, e há um grupo que se propõe a aceitar a existência desse sofrimento.
Por isso, no caso da AIDS, o primeiro grupo valoriza os remédios naturais e os tratamentos empreendidos por curandeiros em detrimento dos medicamentos tradicionais – daí a lentidão da distribuição de remédios para os doentes. Segundo Semper, no início da epidemia, menos de 1% da população estava infectada. A postura afrocêntrica do país influenciou diretamente a trajetória da doença.
A segunda parte da palestra foi sobre a relação entre arte e trauma. O professor João Frayse, que estuda as artes plásticas contemporâneas sob o viés psicanalítico, falou sobre a problemática do corpo e do silêncio. Nos anos 60, surge a body art, que afirma que o corpo é a única realidade digna de arte. Assim, os artistas deixam de representá-lo e passam a usá-lo, em ações performáticas. Além disso, a dor é mostrada sem metáforas, de forma chocante, traumatizante. Nesse contexto, os artistas começam a abordar a AIDS em suas telas – muitos são, eles mesmos, soropositivos, e usam seus corpos doentes em suas obras. O silêncio tem várias facetas: é a impossibilidade de discurso perante a dor da arte atual, o choque dos espectadores diante de uma obra, o silêncio cúmplice dos governos em relação à AIDS.