O ano de 2014 foi encerrado como um ano difícil para a economia brasileira. O país passou por uma recessão técnica, a inflação ficou, desde janeiro, acima da meta de 4,5% estabelecida pelo governo, os juros continuam entre os mais altos do mundo, as contas públicas estão no negativo, o índice de confiança da indústria atingiu o nível mais baixo em 15 anos. Será uma crise? Quais as perspectivas para 2015?
No dia 3 de dezembro de 2014, o economista Fernando Rugitsky concedeu uma entrevista exclusiva à Agência Universitária de Notícias (AUN), onde analisou os atuais problemas econômicos do Brasil - defendendo a desigualdade de renda como o maior deles -, a complexidade do sistema tributário brasileiro, o projeto de revisão da LDO e as perspectivas para 2015 com as novas chefias econômicas no governo.
Rugitsky é professor e pesquisador da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP pesquisador associado do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
AUN: O Brasil acaba de sair de uma recessão técnica, a estimativa para o crescimento da economia brasileira em 2014 é de menos de 1%, a inflação está por volta dos 6%, os juros continuam entre os mais altos do mundo, os gastos públicos estão muito acima do orçamento... A lista de problemas é grande. A economia brasileira está em crise?
RUGITSKY: Não. Na minha visão particular, é excessivo falar em crise. Mesmo os economistas mais contrários à política econômica do governo atual evitam falar em crise no momento.
Crise é um fenômeno mais complexo do que pode ser medido pela avaliação da variação do produto interno bruto (PIB). Tem esse critério, uma convenção, em que dois trimestres seguidos de redução do PIB caracterizam recessão técnica. Mas se isso não impacta efetivamente no nível de emprego, no crescimento da renda das pessoas, passar dessa caracterização de recessão para uma caracterização de crise me parece excessivo.
O que não significa falar que as coisas estão fáceis. De fato, temos visto nos últimos anos uma desaceleração do crescimento e uma persistência da inflação em um nível elevado.
Eu corrigiria a pergunta para falar que o que se tem visto do lado fiscal é menos os gastos ultrapassarem os orçamentos, mas mais as receitas serem menores do que o previsto. Portanto, tem um certo aperto do lado fiscal e a taxa de juros de fato tem se mantido no patamar brasileiro, que é atípico em outras partes do mundo.
AUN: Dentre os problemas atuais, quais o senhor considera mais preocupantes? Por quê?
RUGITISKY: Ao meu ver, o problema mais grave da economia brasileira, ainda que não seja tanto enfatizado pelos economistas, é a desigualdade.
Muita gente vem enfatizando o problema fiscal, ou até mesmo o problema da inflação, como o problema mais grave. Eu discordo, acho que há uma certa transição do ponto de vista da política fiscal, mas o governo brasileiro ainda está muito longe de entrar em uma trajetória insustentável, do ponto de vista do endividamento público. Ainda que seja uma questão a ser administrada com cautela.
A inflação persistente em torno dos 6% é um problema, tem custos, gera impactos negativos em vários aspectos da economia. Mas precisa ser lembrado que a nossa inflação segue dentro das bandas das metas estipuladas, há muitos anos. E o Brasil, apesar de uma aparente redução nos últimos dez anos, tem ainda um dos níveis de desigualdade de renda e riqueza mais elevados do mundo. Para mim, esse é o problema mais grave e o mais complicado de ser compatibilizado com uma sociedade democrática.
AUN: Em palestra deste ano na FEA, o economista Albert Fishlow sugeriu, entre outras medidas, o aumento das taxas de investimento e de poupança como propulsores do crescimento econômico do país. O senhor também concorda com essas medidas?
RUGITSKY: Sem dúvida nenhuma, a taxa de investimento é o principal motor do crescimento. Se quisermos um crescimento maior, precisamos conseguir que a nossa economia, como um todo, invista mais. A dificuldade de investir mais é que estamos tratando de uma economia composta por 200 milhões de pessoas, em uma sociedade como a brasileira em que as decisões de investimento são descentralizadas. E atingir um percentual elevado de investimento em relação ao PIB não é fácil, nem é consensual entre os economistas como se faz.
Alguns acham que a melhor forma de aumentar o investimento é aumentando a poupança. Há um outro grupo de economistas, mais próximo do que eu acredito, que acha que no fundo a relação de causalidade é na outra direção: aumentando o investimento, a poupança será criada como conseqüência.
Então, sem dúvida, aumentar o investimento é um grande desafio. Mas aumentando a poupança isso provavelmente não seria atingido.
AUN: O senhor poderia comentar a estrutura tributária brasileira? Sua complexidade é um entrave para os investidores?
RUGITSKY: Muito se fala sobre a suposta complexidade e ineficiência do nosso sistema tributário. Acho que, sem dúvida, é um sistema complexo que poderia ser simplificado e aperfeiçoado de inúmeras maneiras. Deve se levar em conta que o Brasil é um país com 200 milhões de pessoas, com uma estrutura federativa ampla e descentralizada. É difícil ter um sistema tributário simples.
Um dos principais entraves à mudança do sistema tributário são as relações federativas (o quanto que vai de receita para os estados e municípios e para a União). Mas acho que parte dessa complexidade e a dificuldade de transformar o sistema, no fundo, deve-se ao fato de que ele atende interesses muito claros. Ele é um dos sistemas mais regressivos do mundo, que depende muito da tributação indireta, que á a tributação sobre o consumo, tipicamente ICMS, ISS, PIS e COFINS, e muito pouco de impostos sobre a renda e o patrimônio, como o imposto de renda, o IPVA e o IPTU.
Os impostos sobre renda e patrimônio em geral são progressivos, no sentido de que quem ganha mais, paga proporcionalmente mais. Os impostos sobre o consumo, em geral, são regressivos, porque mesmo que as pessoas tenham uma disparidade de renda muito grande, o nível de consumo, por exemplo, de alimentos e roupas, é mais homogêneo, então as pessoas que ganham menos, pagam proporcionalmente mais.
Isso significa que, em muitos países, o sistema tributário tem, dentre suas principais funções, a função de redistribuir renda e reduzir as desigualdades. Recebe do mercado uma estrutura de desigualdade tal, e depois da cobrança dos impostos, a sociedade se torna menos desigual. Na sociedade brasileira, isso acontece muito pouco. Você tem, digamos, uma diminuição da desigualdade pelos impostos diretos, mas a incidência dos impostos indiretos compensa parcialmente tal redução da desigualdade e permanecemos com uma sociedade profundamente desigual.
Eu acho que esse é o grande problema do sistema tributário do Brasil e também a fronteira do combate à desigualdade. Se quisermos, de fato, levar a sério a tentativa de criar uma economia e uma sociedade menos desiguais, precisaríamos transformar o nosso sistema tributário.
Se ele impede investimentos externos e se ele é muito custoso para os investimentos estrangeiros, isso, sem dúvida, pode ter um elemento de verdade, mas me preocupa menos do que os efeitos danosos que ele tem para nossa sociedade e para a economia interna.
AUN: O governo federal fechou setembro com um déficit recorde nas contas públicas. O montante foi de R$ 25,5 bilhões, o pior da série histórica do Banco Central. Gastar mais do que arrecadar é comum na economia brasileira?
RUGITSKY: O Brasil tem realizado superávits primários consistentemente há muitos anos. Isso significa que, considerando tudo o que arrecadamos e deduzindo tudo o que se gasta, menos o pagamento de juros da dívida pública, há um saldo positivo. Esse saldo positivo é justamente usado para pagar os juros da dívida.
Então, desse ponto de vista, é melhor qualificar a afirmação de que nos últimos anos gastamos mais do que arrecadamos. O problema é que o serviço da dívida ainda é muito pesado no caso brasileiro e você precisa ter um superávit alto para estabilizar o endividamento público.
A situação das contas atuais, como já mencionei, é mais uma conseqüência de que a desaceleração do crescimento puxou muito para baixo a arrecadação tributária do que um problema de descontrole dos gastos.
AUN: Hoje o Congresso Nacional votará o projeto que visa alterar a LDO e flexibilizar a meta do superávit primário. Isso já foi feito antes? Quais as conseqüências da aprovação e da não aprovação desse projeto de revisão, tanto para o cenário interno quanto para o externo?
RUGITSKY: Esse nosso regime institucional da política fiscal (o orçamento, a LDO, os planos plurianuais) foi consolidado na sua forma atual com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal no ano 2000. Desde lá, salvo engano, essa é a primeira vez que há a revisão da LDO no final do ano. Isso, de fato, mostra que o Governo não está conseguindo cumprir a meta de superávit primário imposta. Isso é muito grave? Do meu ponto de vista, é muito menos grave do que muitos economistas dizem.
Vários argumentam que do ponto de vista internacional isso leva a economia brasileira a correr o risco de perder sua avaliação de grau de investimento. Então os títulos do governo brasileiros vão ser considerados mais arriscados para os investidores institucionais e isso pode levar ao aumento de juros sobre a dívida do governo, que pode ter conseqüências ruins.
E o descontrole da política fiscal do ponto de vista doméstico pode levar a uma aceleração da inflação, entre outros problemas. Eu acho que, ainda que estejamos em um momento de aperto fiscal razoável, por causa da queda da arrecadação, esses riscos tão propalados são exagerados.
Acredito que o projeto de lei vai ser aprovado, porque você precisa aprovar para fechar as contas no fim do ano. E até porque o novo ministro da Fazenda recém indicado, Joaquim Levy, já se comprometeu com metas de superávit para o ano que vem e para os dois anos subseqüentes, essa aprovação não deve ter grandes impactos na economia doméstica nem na relação da economia brasileira com a internacional.
O que todo mundo vai ficar de olho são as propostas de aumento de impostos ou redução de gastos que os novos ministros vão apresentar assim que tomarem posse.
AUN: O que esperar da nova equipe econômica do Governo, entre eles o novo ministro da Fazenda Joaquim Levy e o ministro do Planejamento Nelson Barbosa? Quais as perspectivas para 2015?
RUGITISKY: A perspectiva é de um ajuste fiscal. É isso que o chamado “mercado” estava demandando e é nessa direção que a presidenta reeleita acena com a indicação do ministro Joaquim Levy.
Eu acho a perspectiva ruim. É o que venho tentando enfatizar nas outras perguntas: não há necessidade desse ajuste fiscal. A situação fiscal do Brasil – e não se trata de defender o aumento do endividamento público – está mais controlada do que se argumenta. Precisa-se de mais transparência, isso sim, e é algo que Nelson Barbosa tem enfatizado.
Mas um ajusto fiscal tal qual tem sido sugerido por vários economistas deve levar, no mínimo, à uma manutenção da taxa de crescimento da economia brasileira próximo de zero ou, ainda, à uma redução do crescimento. Isso deve começar a impactar o nível de emprego e o crescimento da renda das famílias, que é o mais grave.
A expectativa do governo, aparentemente, é que esse primeiro ano ou talvez os dois anos de ajuste arrumem a casa para elevar o crescimento, a partir de 2017. Mas não consigo entender de onde eles acham que pode vir um crescimento daqui a dois anos, depois de dois anos de ajuste fiscal. Eles acham que vem da credibilidade maior do governo e isso estimularia os investimentos? Ao meu ver, as firmas investem com a perspectiva de vender o que produzem, se seus estoques estão se reduzindo. Com dois anos de ajuste fiscais, os estoques vão se acumular e o risco é que se tenha mais problemas para retomar o crescimento a partir de 2017.