Aos 15 anos de idade, B. revelou ao seu namorado ser portadora do vírus HIV. Ao saber da notícia, ele a rejeitou e desapareceu de sua vida. Desde então, B. resolveu que nunca mais contaria a pessoa alguma sobre seu diagnóstico de aids. Aos 18 anos, internada para tratar uma doença oportunista, ela deixa escapar que seu namorado há mais de dois anos não sabia da infecção. A assistente social resolve, então, chamar o namorado de B. para que ela relate a ele sua soropositividade. Ao saber da notícia, a jovem tem uma crise de angústia, chora e briga com a equipe médica, enfatizando que não contaria. Para seu alívio, o médico infectologista que a tratava consegue impedir a ação da assistente social. B. foi infectada por transmissão vertical: o vírus foi herança de sua mãe.
Esse episódio aconteceu com uma paciente do ambulatório para tratamento de soropositivos onde a psicanalista Mayra Moreira Xavier Castellani atua. Ao presenciar casos como o de B., a psicóloga resolveu iniciar uma pesquisa de mestrado pelo Instituto de Psicologia da USP com o objetivo de entender, a partir da psicanálise, a origem da angústia envolvida na experiência da revelação do diagnóstico de HIV/aids e buscar alternativas para auxiliar os pacientes no enfrentamento desse processo. Para tanto, ela reuniu sua experiência clínica e entrevistou quatro jovens infectados por transmissão vertical.
De acordo com dados do Ministério da Saúde, o primeiro caso relatado de aids no Brasil é de 1982. Em 1985, foi registrado o primeiro caso de transmissão vertical, que acontece quando a mãe transmite o HIV para seu filho, que pode ser infectado durante a gestação, o parto ou a amamentação. Até junho de 2014, foram notificados 757.042 casos de aids no Brasil, sendo 15.564 deles em menores de cinco anos de idade, o que indica o número de casos por transmissão vertical. Nos últimos 10 anos, houve uma redução de 35,7% no número de infectados por transmissão vertical devido ao aumento do acesso à terapia antirretroviral e aos serviços especializados durante o pré-natal, ao oferecimento de teste anti-HIV para gestantes e também aos exames de carga viral do HIV e contagem de células CD4, por onde o vírus entra no sangue.
Devido à carência de tratamentos e medicamentos disponíveis durante os primeiros anos da aids no Brasil, muitos dos pacientes infectados sobreviveram poucos anos com a doença. Diversas mães morreram deixando seus bebês, que hoje são jovens carregando no sangue o vírus transmitido por elas e sendo tratados como sobreviventes de uma epidemia. Quando crianças, frequentemente tiveram de conviver, mesmo antes de conhecerem o diagnóstico, com o adoecimento dos pais ou dos irmãos, com a orfandade e com o luto.
Ao receberem a notícia, o que geralmente acontece durante o período da adolescência, seja pela própria mãe seja por um cuidador ou profissional da equipe de saúde, o diagnóstico é tratado como um segredo que deve ser revelado apenas a pessoas altamente confiáveis, por conta do estigma social e de sentimentos de vergonha e culpa geralmente associados à doença. A partir daí, muitas vezes o segredo é mantido inclusive em casa, onde é assunto praticamente proibido de ser discutido. É comum o adolescente ter uma postura de omitir seu diagnóstico de HIV e seu tratamento como forma de se proteger de preconceitos, julgamentos e descriminações, omissão esta que pode ser incentivada pela família.
Em relação à revelação para os parceiros amorosos, os jovens reconhecem a necessidade de proteger seu parceiro da possibilidade de infecção, entretanto revelar seu diagnóstico e ser abandonado mostra-se como um fato ameaçador. Assim, a maioria fica à espera da chegada do momento adequado para dar a notícia ao parceiro, o que quase nunca acontece de súbito. O diagnóstico do HIV positivo tem um caráter traumático nos indivíduos, que pode causar feridas não apenas biológicas, mas também sociais e psíquicas. Segundo Castellani, o vírus é muitas vezes tratado como “fonte de todo o mal” pela sociedade e pelo próprio paciente.
Tal ideia remete ao conceito de tabu proposto por Freud, em que as pessoas ou objetos vistos como tabu são considerados como potenciais geradores de efeito destrutivo transmitido pelo contato. Essa característica faz com que se procure extinguí-lo, pelo pavor do contágio. O HIV é, frequentemente, entendido como essa força perigosa, que tem como efeito destrutivo o adoecimento e a morte. Tal concepção é capaz de gerar o isolamento social e o silêncio das pessoas vivendo com HIV. A psicanalista sustenta que “transmitir esse vírus, o que pode acontecer através da herança e da própria comunicação, é como transmitir um tabu, carregado de significações relacionadas ao proibido”. No entanto, o indivíduo é passível de reconstruir as significações dessa herança.
Castellani desenvolveu a hipótese de que o momento da revelação do HIV funcionaria como uma situação traumática e a angústia de revelar – tal como B. sentiu ao ameaçarem fazê-la contar sobre seu diagnóstico ao namorado –, anterior ao ato de revelar por si só, funcionaria como um sinal a fim de evitar um desprazer maior: o abandono da pessoa amada, o desamparo. Essa angústia atuaria como um alerta para acionar o processo defensivo em resposta ao trauma ocasionado por uma possível revelação. Além disso, ela acredita na possibilidade de que a forma como lhe foi revelado o diagnóstico possa influenciar a revelação ao parceiro amoroso.
De acordo com a pesquisadora, o segredo resguarda uma fantasia, que faz parte da constituição do sujeito e é capaz de posicioná-lo frente à questão da revelação. “Revelar a infecção não se traduz por dar uma notícia, uma informação qualquer”, diz. Definir o HIV como segredo tem a função de preservar a fantasia do sujeito incomunicada. Assim, antes de enunciar o segredo abertamente, é necessário que a fantasia seja escutada na clínica, para que a angústia da revelação do vírus possa ser tratada.
Ela propõe que, para cuidar do local que o segredo ocupa na subjetividade dos pacientes e não provocar mais traumas, o importante seria oferecer uma direção do tratamento desses jovens através da escuta psicanalítica, com o manejo delicado entre o tempo de cada indivíduo e a necessidade da revelação ou da manutenção do segredo, sem a imposição de uma alternativa universal. Castellani defende ainda que a clínica psicanalítica no tratamento de pessoas com HIV deve levar em conta as peculiaridades do sujeito, não tendo como obrigação servir de apoio para a revelação do diagnóstico a terceiros.
Os resultados obtidos por Mayra Castellani foram reunidos na dissertação “Contar ou não contar, eis a questão: um olhar psicanalítico sobre a experiência da revelação diagnóstica de HIV em jovens infectados por transmissão vertical”, orientada pela professora Maria Lívia Tourinho Moretto e defendida em dezembro de 2014 no IPUSP.