O relatório final da Comissão Nacional da Verdade apresenta 29 recomendações para o Estado relacionadas às violações dos Direitos Humanos durante o regime militar. Tais recomendações pedem que o Estado reconheça e puna os crimes cometidos e impeça que eles caiam em esquecimento e voltem a acontecer no Brasil. Contudo, a dúvida que pairou durante a IX Reunião do IDEJUST (grupo de estudos sobre internacionalização do direito e justiça de transição), que aconteceu nos dias 25 e 26 de março no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, foi se tais recomendações serão de fato consideradas e se as pesquisas continuarão de alguma forma.
Contando com a presença de chefes e membros das comissões estaduais da verdade, pesquisadores e intelectuais, a reunião foi responsável por fazer o primeiro balanço geral das Comissões da Verdade do Brasil e discutir o papel do relatório produzido na justiça de transição brasileira. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012 para apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre setembro de 1946 e outubro de 1988. Com o término do mandato da CNV em dezembro de 2014, a principal pauta da IX Reunião do IDEJUST foi o futuro do relatório produzido ao longo de dois anos da existência da comissão. O relatório, composto por três volumes disponíveis online (http://cnv.gov.br/), é considerado por membros da CNV e da sociedade um grande passo na reconstrução da memória sobre as violações de Direitos Humanos cometidas durante o regime militar. O trabalho da comissão foi extenso e apresenta relatos e levantamentos ricos em informações acerca das torturas e perseguições políticas cometidas.
Artigos do IDEJUST
Dentre os 39 trabalhos apresentados durante o segundo dia de reunião, três foram produzidos por alunas do IRI.
Thalita Leme Franco, doutoranda no instituto, expôs o artigo “A CNV sob o prisma da influência da jurisdição internacional”. Parte de sua tese de doutorado, o artigo testa a hipótese da influência da jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) na criação da Comissão Nacional da Verdade pelo Estado brasileiro.
Em 2010, o Brasil foi condenado na Corte Interamericana em ação movida por familiares de mortos e desaparecidos no período de repressão militar. Nessa época, a lei para criar a CNV já passava pelos tramites legais, o que para Thalita foi uma tática de política externa. “O Estado brasileiro fez pouco sobre o assunto antes de saber que seria condenado pela Corte Interamericana. Então, o governo foi bastante ardiloso ao criar a CNV”. A condenação numa corte de proteção dos direitos humanos é bastante pejorativa para um Estado democrático, que precisa cumprir integralmente a sentença para que o caso seja encerrado. Até agora, o Brasil não cumpriu toda as medidas, com destaque para o julgamento de crimes não passíveis de anistia - ou seja, que ferem os Direitos Humanos - em detrimento da Lei de Anistia. “Meu objetivo é analisar como a política do Estado usou a CNV como instrumento para passar uma boa imagem no contexto internacional enquanto não cumpre tais medidas ”, explica.
Ainda no âmbito internacional, Fernanda Conforto de Oliveira, graduanda do IRI, apresentou o artigo “A eficácia das ações transnacionais de resgate da memória sobre a Operação Condor”. O trabalho, parte de sua iniciação científica, levanta a hipótese de que as ações transnacionais entre os países membros do Mercosul e alguns associados é essencial na justiça de transição e no resgate da memória por facilitar o acesso e o intercâmbio de documentos relacionados a Operação Condor.
Dentre as iniciativas desenvolvidas na Reunião de Altas Autoridades de Direitos Humanos e Chancelarias do Mercosul e Estados Associados (RADDHH), Fernanda destacou como essenciais a criação do IPPDH (Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos), da Comissão Permanente de Verdade, Memória e Justiça e do Museu de Direitos Humanos do Mercosul (chamado Operação Paloma). O IPPDH foi uma iniciativa especialmente notável, pois, além de propor políticas públicas regionais, criou uma base de dados pública com os arquivos sobre a Operação Condor.
O último artigo do IRI apresentado foi “A lei de acesso à informação no âmbito da CNV”,da aluna de graduação Natália Lima de Araújo. O trabalho é parte inicial de sua iniciação científica e busca mostrar como, quando e por quê a lei de acesso à informação (LAI) foi acionada por membros da CNV, e se, como e por quê ela foi acionada por cidadãos comuns que procuravam saber mais sobre a comissão e os trabalhos desenvolvidos.
Natália percebeu que grande parte das pesquisas realizadas pela CNV se beneficiou diretamente da lei de acesso à informação, que facilitou o acesso a documentos de órgãos públicos e privados que comprovassem os casos de violação dos Direitos Humanos no período da ditadura. A partir disso, a comissão pôde requisitar que o Estado iniciasse um processo de reconciliação nacional e pôde explicitar os resquícios da cultura política autoritária que persistem hoje. Além disso, Natália lembra que com a lei todo e qualquer cidadão pode ter conhecimento do trabalho da CNV e acompanhar se o Estado atende as recomendações apontadas no relatório final. “Tanto a CNV quanto a LAI são importantes na construção de uma democracia participativa e no fim da cultura do sigilo, porque esse tipo de cultura política pressupõe que a informação é um privilégio de poucos (...) Uma vez que o acesso à informação é facilitado, os processos de participação política podem ser intensificados tanto quantitativamente quanto qualitativamente”, aponta Natália.
Os artigos apresentados no segundo dia da IX reunião do IDEJUST deixaram implícito que a reconstrução da memória em prol da justiça de transição ainda apresenta muitas lacunas que precisam ser preenchidas. Outro ponto preocupante é que assim como qualquer relatório, aquele feito pela Comissão Nacional da Verdade pode ou não levar o Estado a tomar iniciativas. “São recomendações que podem, sim, acabar engavetadas”, diz a doutoranda Thalita Leme Franco. A idéia, porém, é que o trabalho da CNV não seja nem o ponto de partida nem o ponto de chegada da justiça de transição, mas que ele consiga impulsionar o surgimento de outros trabalhos, outras comissões e outros grupos da sociedade civil que se mobilizem em torno da pauta.