Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS), recomende que a taxa ideal de cesarianas em determinado local ou serviço não ultrapasse 15%, no Brasil o percentual é triplo do indicado pelo órgão. Esse é um dos aspectos relatados pela pesquisa Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz e realizada entre janeiro de 2011 e julho de 2012 em todo o país. Esse banco de dados foi utilizado de base para a dissertação de mestrado de Bruna Alonso, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública, que observou uma relação entre o setor de saúde privado e o alto número de cesarianas. Foi constatado também que as mães que utilizaram a rede pública apresentavam maiores taxas da intervenção caso tivessem melhores condições socioeconômicas.
A pesquisadora, orientada pela Profa. Dra. Flora da Silva, buscou estudar quais os fatores que induziam à cirurgia além do viés cultural: “No Brasil, as pessoas acham que ter uma cesariana é sinônimo de boa assistência, e que o parto vaginal é uma coisa suja, violenta, nojenta. [O parto normal] é um evento que foge do controle em uma sociedade que deseja que tudo seja previsível”, aponta.
Para realizar a pesquisa, Bruna dividiu os dados encontrados em dois grandes grupos de mulheres, as que foram atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e as que foram atendidas pelo Sistema de Sáude Suplementar (SSS), que engloba os setores privados do serviço, com o objetivo de comparar entre eles os fatores socioeconômico, clínico e demográfico. Foram analisados dados de 9828 mulheres, sendo que 79% eram do SUS e 21% do SSS. A taxa de cesarianas na região foi de 53%, destes sendo quase 45% de casos no setor público e 84% no privado.
Saúde pública
Os fatores estudados que levaram a maiores chances de parto normal foram a mãe ser adolescente e ter seu filho em cidades que são capitais de seus estados. Quando a mulher é mais jovem, a chance do médico optar pela cirurgia é menor, por conta da menor chance de intercorrências — problemas durante o parto — e do maior cumprimento da lei do acompanhante, segundo a qual a mulher pode ter alguém de confiança ao seu lado durante o processo do parto: “Quando a mulher se encontra sozinha num sistema de saúde projetado pra ser uma linha de produção, ela fica mais suscetível a ações como violência obstétrica e intervenções desnecessárias, como muitas vezes é a cesariana”, explica a pesquisadora.
Sobre as capitais apresentarem menores taxas, concluiu-se que as mulheres residentes nessas regiões têm mais acesso à informação de melhor qualidade: “Isso faz com que ela se sinta empoderada e questione a decisão pela cirurgia do profissional que está acompanhando o parto”, completa.
Já os fatores que levaram à maior taxa da intervenção foram mulheres com trabalho remunerado, pertencentes às classes superiores e com ensino superior ou mais no quesito socioeconômico. Esse é um dado curioso já que todas as mulheres deveriam ter a mesma probabilidade, ao menos nesse fator de comparação, de ter que passar pela intervenção. Uma das hipóteses levantadas pelo trabalho é de que essas mulheres estariam recebendo uma “melhor assistência”, representada pela cesariana no imaginário brasileiro, por terem uma condição social superior.
Na parte clínica foi constatado que mães primíparas — que tiveram primeiro parto vaginal —, com cesariana anterior, com 35 anos ou mais ou que apresentaram intercorrências durante a gestação foram mais suscetíveis a terem partos por cesariana. É importante destacar que nem todos esses problemas exigem cirurgias e que existem outras formas de lidar com as adversidades, sendo a intervenção o último recurso.
Saúde privada
Os parâmetros utilizados para ambos os campos da pesquisa foram os mesmos, contudo nenhum dos fatores apresentou números significativos o suficiente para que pudessem ser relacionados com o aumento ou diminuição do número de cesarianas. “O Setor de Saúde Suplementar se comportou como fator independente associado à cesariana. De alguma forma, talvez pelo modo como é estruturado, ele mesmo acaba por determinar a cirurgia, independente dos fatores associados à mulher”, argumenta a pesquisadora. Isso ocorre por dois principais fatores: a conveniência médica, na qual é muito mais fácil para o médico agendar um nascimento que dure algumas horas do que acompanhar uma mulher durante todo o trabalho de parto que começa em horário indeterminado e não tem prazo de duração; além disso existe a estruturação do setor privado, que é feita em torno do lucro e exige desocupação de leitos e profissionais.
O setor é regulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), contudo sua atuação ainda é tímida perante a taxa alarmante de mais de 80% de cesarianas nos partos feitos no serviço. Para combater essa realidade, foi anunciada uma resolução em janeiro desse ano, em parceria com o governo federal, que exige o preenchimento de um partograma pelo médico da rede privada antes de realizar a cesariana. Trata-se de um documento onde são registradas todas as etapas do trabalho de parto da gestante, buscando inibir o agendamento de cesáreas e intervenções desnecessárias.
Sobre as mudanças implementadas, a pesquisadora acredita que elas serão benéficas, porém não podem significar o fim da visibilidade da situação: “[Governo e ANS] estão sinalizando mudanças, mas vai haver uma tentativa de burlar a legislação por parte desses médicos. Essa é uma conquista, mas as pessoas não podem parar de olhar para o problema por conta de um primeira vitória” completa Bruna.