No início da carreira, Ataulfo Alves já despontava como um dos grandes sambistas da época. De origem humilde, ele foi um dos principais compositores nacionais surgidos na década de 1930 no Rio de Janeiro. Junto a sua geração, estabeleceu o samba como gênero musical, além de influenciar o que veio a ser a moderna música popular brasileira nos anos seguintes. Apesar de sua importância e de seu enorme sucesso, o artista mineiro, falecido em 1969, aos 59 anos, ainda é pouco estudado no meio acadêmico, em grande parte devido ao preconceito que existe nesse espaço com relação à música popular, como aponta a pesquisadora Amanda Beraldo Faria. Em sua dissertação de mestrado, ela abordou a carreira do sambista, buscando desconstruir sensos comuns e trazer novas visões sobre sua obra.
A noção de saudade
Intitulada De Amélias e Barracões: a noção de saudade na obra de AtaulfoAlves, a proposta da pesquisa é entender a saudade nas canções do sambista, pois o significado desse sentimento se modifica ao longo de sua obra. Nas décadas de 30 e 40, chamado pela pesquisadora de primeiro momento da carreira do sambista, a noção de saudade é entendida como uma articulação político-conservadora. Nesse período, as canções de Ataulfo retratam a vida pobre carioca, promovendo, através do tema da saudade, a ideia de que esse grupo deveria se manter em sua posição social, em comum acordo com a hegemonia das classes dominantes da época.
Por outro lado, as canções do período são também progressistas do ponto de vista feminino (mesmo que não intencionalmente), já que em várias letras as mulheres abandonam os companheiros quando desejam, o que contribui para a emancipação delas enquanto grupo. “Nos anos 30 e 40, uma mulher de classe mais abastada, caso abandonasse o marido para viver com outro, estaria desonrada na sociedade. Ataulfo, então, reproduz nas canções algo comum em seu dia a dia, nos morros do Rio”, explica Amanda. A música Saudade do meu barracão, de 1937, gravada por Floriano Belham, ilustra os dois aspectos apresentados, pois a vida pobre é exaltada, ao mesmo tempo em que o narrador lamenta a partida da mulher, como nos versos:
“Hoje choro com saudade do meu barracão
Toda riqueza que havia era um violão
E uma morena faceira que me desprezou
Só me deixando tristeza, alegria levou”
Já nos anos 50 e 60, no segundo momento da carreira do sambista, a noção de saudade remete ao passado e à tradição. Para a pesquisadora, isso não ocorre só porque Ataulfo está mais velho e com “saudade do passado”, mas porque o artista se esforça para defender a legitimidade de seu samba. “Ele busca se colocar como detentor da tradição e do samba tradicional. Não é em nome do ‘samba tradicional’ nem de um grupo social (como os negros) que ele faz isso, mas em favor de sua própria carreira”, diz Amanda. O sambista, assim, rejeita a Bossa Nova e a MPB do período em questão. Ataulfo, nesse momento, já havia ascendido individualmente, abandonando uma posição social que o “deixava vulnerável a toda sorte de dificuldades”, como coloca a pesquisadora. Diante disso, a saudade aparece como “agente de requerimento de autenticidade na música brasileira”, afirma Amanda. Em várias canções dos anos 50 e 60, a pesquisadora também aponta que saudade surge como oposto de esperança, pois os compositores tradicionalistas, como Ataulfo, se apegavam ao passado por meio da saudade, enquanto os compositores mais “modernos” almejavam um futuro melhor em suas canções, com certo clima de esperança.
A pesquisa também revela um aspecto pouco falado da obra de Ataulfo: a presença do universo do malandro, com letras que alternam entre a ordem e a desordem do ponto de vista burguês. Quando, por exemplo, em Ai, que saudades da Amélia, de 1942, o narrador sente saudades de uma mulher que compactua com a ideia de não trabalhar, em pleno Estado Novo, “quando o trabalho era dever social previsto por lei e a vadiagem condenada”, diz Amanda, “revela-se que o narrador sente saudade do estilo de vida – do não trabalho – que levava com a companheira.” Além de representar a desordem, a saudade também ganha um outro possível significado nessa passagem, podendo ser entendida como uma contravenção em relação à ideologia vigente. Na pesquisa, é mostrado que o mundo da desordem na obra de Ataulfo vem justamente do contexto dos negros naquele momento, que muitas vezes agiam buscando a transgressão, pois as leis e as vontades políticas agiam contra eles.
Simonal, em seu programa, em 1967, diz: “Quando se fala em samba autêntico, é inerente a presença do regional de Caçulinha”. Fica implícito que para tocar com Ataulfo Alves, que na época defendia sua autenticidade, só mesmo Caçulinha.
Diferentes entendimentos
A noção de saudade também muda perante o público, conforme as classes sociais e o tempo considerado, adquirindo múltiplos significados. A pesquisa tenta compreender a ressignificação e o entendimento das canções de Ataulfo entre esses públicos. Por meio da ideia de estrutura de sentimentos, do teórico inglês Raymond Williams, Amanda considerou na pesquisa que "as pessoas têm visões diferentes a partir de suas experiências de vida. Cada grupo social, no entanto, compartilha entre seus integrantes certas visões comuns, gerando nesses grupos estruturas de sentimentos particulares sobre diferentes temas." Foram consultadas revistas e documentos antigos para tal levantamento.
Por meio das estruturas de sentimento, as canções de Ataulfo Alves podem ganhar diferentes leituras. Em Ai, que saudades da Amélia, canção mais consagrada e uma das mais polêmicas do sambista, a pesquisadora aponta possíveis interpretações. “Para o senso comum, Amélia é a mulher submissa, mas isso não está na letra da música. A parcela da sociedade com visão moralmente conservadora convencionou essa ideia”, afirma Amanda. A canção também marca as mudanças na carreira de Ataulfo e no entendimento da personagem Amélia, ocasionada pelo tempo e pela camada da sociedade da qual o sambista passou a fazer parte. Ai, que saudades da Amélia, originalmente de 1942 e regravada por Roberto Carlos - para Amanda, “afilhado musical-comercial” de Ataulfo - em 1967, “deixou de ser samba de morro para se tornar o símbolo da ‘mulher de verdade’ – ou seja, submissa”, diz a pesquisadora. Ao mesmo tempo, tentava-se inserir Roberto à posição dos autênticos, com um samba que um dia foi de morro. A principal difusão da saudade de Amélia foi como uma mulher submissa, numa visão sexista, referindo-se ao antigo “papel da mulher” na sociedade. Para a pesquisadora, “praticamente ninguém enxerga nessa música, hoje em dia, a recusa ao trabalho ou no mínimo a vontade de não trabalhar, corroborando com a malandragem”.
O filho do sambista, Ataulpho Alves Junior, auxiliou a pesquisadora desde o início do estudo, fornecendo histórias e informações sobre seu pai. A pesquisa foi realizada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), e possui orientação multidisciplinar, como é comum no IEB, na área de Estudos da Canção. “Há pitadas de história social, sociologia, linguística, estética e outros”, diz Amanda, que foi orientada pelo professor Walter Garcia.