Um grupo de pesquisadores do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, coordenados pela professora Mayana Zatz, está estudando uma alternativa para pacientes que necessitam de um transplante de fígado. A ideia é criar um novo fígado a partir de células obtidas através de células do próprio paciente.
O fígado exerce diversas funções essenciais para o organismo humano, como secretar bile, armazenar glicose, produzir proteínas nobres, sintetizar o colesterol, e transformar amônia em uréia, entre outras. O transplante desse órgão é atualmente a única alternativa para pacientes acometidos por doenças hepáticas irreversíveis. Entretanto, tal processo é limitado pela baixa disponibilidade de doadores e má qualidade dos órgãos disponíveis para transplante, além de restrições devido à compatibilidade imunológica.
Considerando a capacidade de diferenciação de células-tronco em inúmeros tipos celulares, e os avanços das técnicas relacionadas ao uso e enriquecimento da ultraestrutura de matrizes de órgãos descelularizados para a recelularização (reconstrução de órgãos por perfusão de células), o objetivo principal do projeto desenvolvido pelos pesquisadores do IB é o desenvolvimento e aprimoramento de técnicas de bioengenharia tecidual que possibilitem a reconstrução funcionalde fígados, com células endoteliais, pericitos e hepatócitos diferenciados a partir de iPSCs.
Enquanto os hepatócitos são as principais células responsáveis pela funcionalidade hepática do fígado, isto é, metabolizar nutrientes e outras substâncias, as células endoteliais e os pericitos compõe os vasos sanguíneos que permitem a circulação sanguínea no orgão.
A descelularização ocorre através da perfusão de uma solução que retira as células do fígado. Após esse procedimento, permanece uma estrutura acelulada, a matriz extracelular (MEC) constituída basicamente por proteínas sintetizadas pelas próprias células do fígado.
Após descelularizar o fígado, o grupo pretende recelularizá-lo com hepatócitos obtidos através de um processo de diferenciação de células troncos conhecidas como iPSCs.
Os pesquisadores obtém iPSCs através de um procedimento conhecido como reprogramação celular. Fibroblastos e eritroblastos são reprogramados para tornarem-se células tronco.
As células tronco obtidas através desse processo são diferenciadas (processo que induz essas células a tornarem-se outro tipo de células) até tornarem-se hepatócitos, que juntamente com células endoteliais e pericitos são capazes de recolonizar a matriz proteica até que ela retome sua funcionalidade. Os pesquisadores também pretendem adicionar outros tipos celulares para reconstituir a funcionalidade do fígado.
Por enquanto, o grupo está trabalhando com fígados de ratos Wistar (250-300g). Isso porque seria muito caro trabalhar com fígados humanos nesta etapa do estudo. Os orgãos humanos são compostos basicamente por células e por uma matriz extracelular (MEC), que nada mais é do que uma matriz proteica que dá sustentação as células.
Os pesquisadores já conseguem descelularizar fígados de ratos Wistar, que tem constituição muito semelhante ao fígado de um ser humano, e pretendem recolonizar a matriz extracelular desses orgãos, remanescente após o processo de descelularização, com células humanas. Para tanto, células endoteliais e pericitos estão sendo cultivados, e iPSCs (induced Pluripotent Stem Cells, sigla em inglês para células-tronco pluripotentes induzidas) estão sendo diferenciadas em hepatócitos.
Todo o procedimento deve ser padronizado a partir de avaliações por imunohistoquímica - ou imunofluorescencia. Já a funcionalidade do novo órgão deverá ser avaliada por um método conhecido como dosagem de moléculas produzidas por células hepáticas.
Os hepatócitos são células encontradas exclusivamente no fígado humano. Já os pericitos e as células endoteliais podem ser extraídos de pessoas saudáveis ou até do próprio paciente pois são encontrados em outros tecidos do organismo.
Após a obtenção de novos hepatócitos, os pesquisadores pretendem introduzí-los na matriz proteica com o objetivo de recolonizá-la.
Os hepatócitos são cultivados in vitro em um meio condicionado. Células cultivadas em meio condicionado se desenvolvem através de uma relação de interdependência com as outras células. Essas células produzem fatores que mantém as outras células vivas e sobrevivem através de fatores produzidos pelas outras células cultivadas no mesmo meio. O pesquisador Luiz Carlos de Caires Júnior, Pós-Doc, que está trabalhando no projeto, explica:“à medida em que elas ficam imersas em tal meio, secretam fatores, sinais, para as células que estão próximas e até distantes. Esses fatores enviam mensagens, sinais, para as células e essas reagem de acordo com o sinal, fator, liberado pela vizinha. Os sinais emitidos podem significar: comando de proliferação, morte celular, diferenciação, dediferenciação, etc. Como esses fatores são liberados para o meio (solução rica em nutrientes), esse mesmo meio é considerado, então, enriquecido (condicionado) com fatores que são necessários para a manutenção, diferenciação, prolifereção (e etc) das células.. a ideia é que esse meio condicionado facilite a produção e manutenção dos novos hepatócitos.”
Os pesquisadores pretendem utilizar os nutrientes produzidos pelos hepatócitos cultivados em meio condicionado na solução introduzida na matriz proteica durante o processo de recelularização com o objetivo de induzir o enriquecimento da matriz e auxiliar o amadurecimento das células perfundidas.
O grupo já conseguiu reprogramar eritroblastos e fibroblatos, transformando-os em iPSCs e, obter hepatócitos a partir das iPSCs. Além disso, já conseguiram descelularizar um fígado da rato Wistar. Agora, pretendem padronizar o processo de descelularização através de técnicas de bilogia celular e molecular, recelularizar a MEC dos fígados descelularizados, para então, transplantar os novos fígados.
A imunofluorescência é uma marcação realizada através de anticorpos. O objetivo da imunofluorescência é identificar quais as proteínas que compõe a matriz proteica e as células do fígado e se elas estão presentes no orgão antes e após o processo de descelularização. Dessa forma, através desse procedimento, os pesquisadores atestam se a matriz proteica permanece intacta mesmo após o processo de descelularização e se não há resquícios de células doentes. Dois tipos de anticorpos são utilizados nesse processo, os primários e os secundários. Cada anti corpo primário reconhece uma determinada proteína. Então, os anticorpos secundários reconhecem os anticorpos primários e emitem fluorescência, revelando quais as proteínas presentes na amostra analisada.
São utilizadas uma série de anticorpos primários e uma série de anticorpos secundários para identificar as proteínas presentes no órgão.
A imunoflorescência é realizada antes da descelularização, após a descelularização e após a recelularização.
Se tudo der certo, em meados de 2017, o grupo já estará realizando testes para transplantar fígados humanos construídos em matrizes de ratos em outros ratos.