Médica veterinária e pesquisadora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ), Aline Santana da Hora comprovou em seu doutorado que a proteína truncada do gene 3c do coronavírus felino é um marcador molecular, o qual pode identificar o vírus da peritonite infecciosa felina (PIF). A doença, cuja evolução depende muito das condições físicas e de estresse do gato, é difícil de ser diagnosticada em alguns casos e não possui tratamento efetivo.
O vírus felino ganhou muito destaque com o surgimento do vírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS), responsável pelo surto de pneumonia em humanos que causou inúmeras mortes na China. Ele serviu de modelo para estudar o funcionamento do vírus da SARS, pois ambos são coronavírus, tendo uma patogenia bastante parecida. Isso somou-se à maior facilidade em se trabalhar com animais, comparando-se com os humanos.
Mutação e evolução
O coronavírus estudado é um vírus RNA presente em quase 100% da população felina que vive em um ambiente com mais de quatro gatos. “Basicamente, ele infecta as células do intestino, podendo — ou não — causar sinais clínicos como a diarréia. Muitos dos animais possuem o coronavírus felino entérico, mas não manifestam a doença”, explica Aline. De acordo com a pesquisadora, esse vírus pode sofrer uma mutação dentro do organismo do animal, causando a PIF. Ele é transmitido através da ingestão de partículas desse vírus eliminadas junto às fezes do gato infectado.
A evolução da doença depende muito da condição do gato. “A peritonite é fatal. Ela pode se espalhar por todo o corpo do gato, causando, por exemplo, alteração no cérebro, no fígado, nos rins”. Aline revela que o animal acaba morrendo devido às lesões em algum desses órgãos. A doença pode, também, acumular líquido no abdômen ou no tórax, distendendo-os e fazendo com que o gato venha a óbito pela compressão dos outros órgãos. “Essa é a forma mais fácil de diagnosticar a doença”, completa.
Aline iniciou sua pesquisa de doutorado com coronavírus felino em 2009. Segundo ela, é importante estudar esse vírus pelo fato de que ele é muito disseminado na população felina - mesmo que apenas uma minoria venha a ficar doente pela PIF. “A diferenciação de quem é portador do coronavírus felino entérico e de quem porta o vírus da PIF é essencial”, completa. Seu doutorado teve enfoque em pesquisar um marcador molecular que pudesse identificar o vírus da PIF, diferenciado o variante letal daquele que não o é.
Clonagem e sequenciamento
O estudo foi realizado com vários animais do Serviço de Patologia da FMVZ que vieram a óbito pela PIF. Amostras de diversos órgãos desses gatos foram coletadas, fazendo-se a clonagem do material genético do vírus e sequenciando seus vários clones para tentar encontrar o marcador molecular. Dos clones estudados, encontrou pelo menos um o qual estava alterado na população com PIF e que não estaria alterado em quem não o possuía.
“Encontrei uma grande diferença em relação ao que existia na literatura científica sobre o assunto até então, porque, basicamente, os estudos foram conduzidos por sequenciamento do gene, sem a clonagem”. Aline explica que esse é um dos fatores os quais dificultavam encontrar o gene alterado em 100% dos animais com PIF. “Devido a clonagem, conseguimos ver toda a nuvem de vírus que existe dentro do animal. Pode-se estar infectado com um vírus que é diferente geneticamente de toda a sua população viral deste devido a à multiplicação. Os ‘filhos’ de um vírus RNA nem sempre são todos iguais ao original”, conclui.
A pesquisa de Aline permitiu estabelecer a proteína truncada do gene 3c do coronavírus felino como marcador molecular para diagnóstico da PIF. “Esse gene não é truncado nos gatos que possuem coronavírus entérico, apenas naqueles os quais apresentam a PIF. Contudo, ainda não se sabe a função exata dessa proteína truncada do gene 3c”. O intuito de Aline agora é ampliar o número de animais estudados em parceria com a Swedish University of Agricultural Sciences (SLU), da Suécia, utilizando-se de ferramentas mais modernas e completas que permitam sequenciar toda a nuvem viral do animal.
“No Brasil, onde não há regulamentação, existem muitas pessoas com muitos animais dentro de casa e por isso o coronavírus é tão disseminado”, relata. Os EUA comercializam a única vacina para a doença, mas Aline revela que ela não é eficaz. A disseminação do vírus pode ser evitada não permitindo aglomerações de gatos, fazendo limpeza constante das vasilhas sanitárias e não deixando-as no mesmo local das vasilhas de água e comida do animal.