Falar na frente da sala de aula ou simplesmente levantar a mão para responder uma pergunta, pedir um dia de folga para o chefe ou chamar alguém interessante para sair, podem ser situações pouco confortáveis para algumas pessoas. Porém, para aqueles que se automutilam, ou seja, praticam alguma espécie de violência física contra o próprio corpo na forma de queimaduras, cortes e até mordidas, esses cenários podem ser simplesmente insuportáveis. Pensando nisso, a psicóloga Anna Karla Garreto investigou mais a fundo como as capacidades de controlar impulsos e resolver problemas (funções executivas) de pessoas com automutilação diferem das pessoas saudáveis e como essa condição precisa ser melhor averiguada para uma melhora ainda mais significativa do paciente.
Anna Karla explica que a automutilação tem seu início geralmente na adolescência, entre 11 e 15 anos. Porém, ela diz que 10% dessas pessoas continuam com o problema na idade adulta. “Isso demonstra que 90% das pessoas, com o amadurecimento neurocognitivo do cérebro, conseguem passar por essas situações de estresse de forma mais tranquila do que os outros 10%”, diz a pesquisadora. “Essa porcentagem que permanece com isso na fase adulta, na grande maioria das vezes, tem uma outra comorbidade psiquiátrica, como depressão ou ansiedade, e, por essa razão, eles apresentam uma gravidade maior do que aqueles que foram tratados mais cedo.”
São justamente esses 10% mais grave que Anna Karla resolveu investigar, já que são eles que necessitam de maior assistência. Durante sua especialização em neuropsicologia no Hospital das Clínicas (HC), ela trabalhou no Ambulatório Integrado dos Transtornos de Impulso (Amiti) e foi dali que iniciou sua pesquisa. “Os pacientes procuravam ambulatório em busca de ajuda. Lá, eles preenchem um protocolo de triagem que todos os paciente que nos procuravam precisam responder.”. Ela conta que para desenvolver a pesquisa ainda precisou complementar a triagem com alguns outros testes para fazer mais tarde a análise de dados.
Anna Karla relata que encontrou dificuldade devido a quantidade de pacientes para uma equipe relativamente pequena que só contava com ela e outro psiquiatra para os atendimentos. “Eu não conseguia atender uma demanda muito grande então aos pouquinhos eu fui fazendo a coleta desses dados. Trabalhamos com 33 pacientes, um número ainda muito baixo, na verdade.”
Depois de selecionados na triagem, os pacientes eram submetidos a uma série de testes neuropsicológicos que avaliavam as funções executivas como memória, flexibilidade mental, capacidade de tomada de decisões, assim como resolução de problemas. Através da comparação dos testes realizados com pacientes do chamado grupo “controle” (pessoas saudáveis) e dos pacientes identificados com o distúrbio, Anna Karla conseguiu perceber um resultado inferior dessas em relação as outras. “Isso significa que pessoas que se automutilam têm uma dificuldade de buscar outras soluções diante de um problema.”, esclarece. “Eles não conseguem pensar em outra possibilidades de enfrentamento e por conta disso, acabam buscando na automutilação uma forma de lidar com essa emoção, essa sensação ruim que sentem.”
Para pessoas que praticam automutilação, controlar o impulso é a grande dificuldade. Quando se deparam com uma situação de estresse psicológico, elas buscam um canto isolado para extravassarem, não se tratando, portanto de atrair atenção. “Se eu sou aluna e eu tenho que falar alguma coisa na frente da sala de aula, por exemplo, isso me dá uma ansiedade, uma sensação ruim porque eu não gosto de me expor, isso me dá vontade de me cortar.”, exemplifica. Anna Karla ainda conta que é comum para essas pessoas carregarem algum objeto cortante consigo para essas situações. “As pessoas que se automutilam não conseguem parar um pouco pra pensar, pra ver uma outra forma. Por isso, quando o tratamento é feito junto do psiquiatra e da terapia, a gente consegue sim fazer com que essa pessoa pare de se machucar e busque outras formas de racionalizar aquilo.”