Viver um dia de 24 horas é correr contra o tempo e disputar cada minuto no relógio. Conciliar trabalho e família ocupa um espaço enorme na agenda da população. Assim, o que acaba ficando por último, na lista de tarefas diárias, é a alimentação. Mas, e se uma pessoa for diagnosticada com diabetes? Provavelmente, sua rotina sofrerá mudanças. Pensando nesse cenário, o pesquisador Alexandre Pereira Cruce da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP analisou as redes de cuidado e autocuidado de diabéticos e identificou que muitos adoecidos e profissionais de saúde não pensam conjuntamente em tratamentos voltados para o contexto de vida dos pacientes.
“Se eu fosse diabético só seria um conjunto de regras e protocolos, a partir de uma observação clínica”, declara Cruce. Também portador de diabetes, o gestor público critica a visão comum dos profissionais quanto à doença. Para realizar seu estudo, ele acompanhou o dia a dia da equipe de saúde de um ambulatório em São Bernardo do Campo. Com base na Antropologia Simétrica e na Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour, o pesquisador aponta que, durante o tratamento, os pacientes se relacionam tanto com elementos humanos como não humanos.
Os aparatos tecnológicos são um dos exemplos da presença desses atores na vida cotidiana. Hoje em dia, o portador de diabetes não consegue controlá-la sem prensar no glicosímetro (medidor da taxa de glicemia no sangue) ou em seringas descartáveis para aplicação de insulina. Esses elementos começam a ditar novas regras nas rotinas das pessoas, menciona Cruce. Dessa maneira, são estipulados horários para tomar as medicações e a taxa de glicose passa orientar o que, quanto e quando as pessoas devem comer.
No acompanhamento das práticas médicas e de cuidado, no ambulatório, o pesquisador observou as relações dos profissionais com os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo ele, alguns deles acabam utilizando o discurso do “terror” para incentivar o paciente a cumprir as regras estipuladas. Frases como: “você perderá o pé” ou “ficará cego” eram, muitas vezes, utilizadas. Esse método não é eficaz e pode fazer com que as pessoas não sigam o tratamento, ele ressalta. Além disso, as relações ocorrem de forma verticalizada e hierarquizada nas quais os indivíduos não são vistos como sujeitos.
Vamos negociar?
A partir de um projeto negociado, é possível construir uma proposta terapêutica singular, que atenda às necessidades do diabético, declara o gestor público. Durante sua observação antropológica no ambulatório, ele conheceu uma vendedora jovem que trabalhava muito e não conseguia sentar-se para comer regularmente. De acordo com Cruce, os profissionais de saúde não davam abertura para pensar em tratamentos adaptados ao contexto de vida dela.
Uma relação horizontalizada permite que se criem laços de confiança entre os pacientes e os profissionais de saúde. Se uma pessoa, por algum motivo, abusar na alimentação, ela tem a possibilidade de negociar novamente sua rotina, sem ser julgada, afirma o pesquisador.
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A comunicação entre atenção básica e especializada
Um dos motivos de Cruce escolher, como objeto de estudo, o ambulatório de São Bernardo do Campo foi por esse promover uma integração maior entre a atenção básica e secundária (endócrinos, cardiologista, entre outras especialidades). Para ele, a primeira é muito “hospitalocêntrica”, isto é, centrada no médico. Já na atenção especializada há um esforço maior em compreender o contexto que o usuário está inserido.
Entre os problemas causados pela falta de integração entre essas redes são os de encaminhamentos. Muitas vezes, o médico da atenção básica não preenche de forma completa o prontuário do paciente. Isso pode gerar dificuldades de conduzi-lo para a atenção especializada, criando empecilhos na condução dos atendimentos e filas nos postos de saúde.
Os conflitos de interesse em pauta
Existem algumas entidades que buscam promover políticas de tratamento e prevenção para os diabéticos. No entanto, determinadas instituições podem ser influenciadas pelos interesses das indústrias farmacêuticas. Um caso avaliado pelo pesquisador é o da Sociedade Brasileira de Diabetes. Ela incentiva o uso de insulinas análogas (são mais modernas e produzidas a partir da insulina humana e modificadas de modo a terem uma ação mais longa ou mais curta, tornando o controle da glicemia muito melhor) no sistema público de saúde. Cruce diz que é inegável os benefícios com o uso dessa medicação, mas isso seria muito custoso para o SUS e favoreceria os laboratórios europeus e americanos.
Atualmente, o Brasil utiliza as insulinas NPH (ação intermediária) e Regular (ação rápida). De acordo com o gestor público, em 2013, o Ministério da Saúde, por meio do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), fez uma parceria com o laboratório ucraniano Indar. O intuito é transferir tecnologia para a produção nacional das insulinas NPH.
Esse acordo é importante, pois reduz a dependência do país por insulinas produzidas em laboratórios americanos e dinamarqueses. Para Cruce, caso o SUS optasse por insulinas análogas comprometeria esse acordo. Além disso, teria mais custos com a produção não podendo oferecê-la de forma igualitária para todos. Assim, a universalidade, um dos principais valores do SUS,seria lesada.