O surto de febre maculosa, em São Paulo, nos anos 30, acometeu cerca de 70 pessoas que chegaram a hospitais com marcas de picadas. À época, especulava-se que eram carrapatos os vetores da doença, mas o pesquisador Flávio da Fonseca não concordava. Trabalhando na Escola Paulista de Medicina durante o período, constatou que as marcas eram diferentes das deixadas por carrapatos, concluindo que elas deveriam pertencer a ácaros hematófagos — os quais se alimentam de tecido epitelial e, por conseguência, sanguíneo — como os trombiculídeos. Cinquenta anos se passaram e só em 2012 o grupo voltou a ser estudado, dessa vez pelo biólogo Fernando de Castro Jacinavicius, em seu mestrado para a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP.
Em outras partes do mundo, com Ásia e Europa, os ácaros trombiculídeos são vetores de determinadas bactérias gram negativas como as do grupo das riquétsias, causador da febre maculosa. A doença, caso não seja tratada, pode levar a óbito. “Na Ásia, cerca de 80% das pessoas as quais são infectadas pela bactéria e não são tratadas acabam morrendo devido a inflamação generalizada que o patógeno causa”, revela Jacinavicius. As riquétsias também estão presentes no Brasil, mas, por serem diferentes das encontradas em outros continentes, não se sabe se há relação entre o tipo dessas bactérias e os trombiculídeos.
Utilizando material de coleta e dos acervou do Instituto Butantan (IBSP), do Museu de Zoologia (MZ) da USP e da Fundação Oswaldo Cruz (CAVAIS-IOC), o biólogo estudou o grupo de ácaros afim de relatar se eles são ou não vetores da doença bacteriana. Ele também fez pesquisa de campo em São Paulo, nas cidades de Cotia e Itapevi, e no Paraná, na cidade de Adrianópolis — regiões endêmicas onde existe a bactéria circulando na natureza — coletando ácaros hospedados em pequenos mamíferos, especialmente roedores e marsupiais. Além disso, recebeu material pesquisadores associados de outras cidades do interior paulista.
Identificação e classificção
Estudos morfológicos foram feitos em 500 lotes de material para analisar caracteres, posição de estruturas e características os quais cada um dos animais possui para fazer a identificação. “É feito um processo de clareamento nos ácaros para deixá-los transparentes e fazer o estudo em microscópio”, explica. Como existem poucas pessoas estudando ácaros e eles são muito parecidos entre si, a morfometria é bastante complicada. Jacinavicius precisou observar como funcionava a taxonomia e quetotaxia — distribuição das cerdas — de cada um deles para classificá-los.
Já com o material coletado em campo, que é fresco, pode ser feita a detecção de agentes patogênicos. Para determinar a presença ou não da bactéria da febre maculosa, foram feitos estudos por PCR, técnica de estudos moleculares na qual o DNA do ácaro é extraído. Durante esse processo, caso o animal esteja contaminado com a bactéria, o DNA do patógeno também é extraído junto a esse processo. Os primers, fragmentos conhecidos de DNA de determinada bactéria, são os responsáveis por conseguir detectar a presença da Rickettsia no organismo do ácaro. Esse procedimento, além de detectar a presença do patógeno, também mostra se a extração do DNA do ácaro funcionou, validando o processo.
Novos registros
Os estudos laboratoriais foram feitos tanto no Laboratório de Epidemiologia da FMVZ quanto no próprio Instituto Butantan, no Laboratório Especial de Coleções Zoológicas. “A quantidade de DNA total das amostras foi significativa, porém nenhuma delas deu positivo para a presença da Rickettsia”, relata. Apesar do resultado negativo quanto à bactéria, o biólogo conseguiu fazer seis novos registros de diferentes espécies de ácaros, os quais ainda não haviam sido encontrados no Brasil, além de novos registros de localidade e hospedeiros para esses ácaros no país.
Apesar de não ter conseguido encontrar a bactéria causadora da febre maculosa em nenhum dos trombiculídeos estudados, esse trabalho não descarta a possibilidade desse grupo de ácaros ser vetor de riquétsias, principalmente porque foram feitas pesquisas pontuais. “Pode ser que, dentro daquela amostragem naquela região, por ser grande o número de ácaros, existam ácaros que possuem a bactéria, mas não conseguimos amostrá-los porque é inviável coletar tudo que há naquele lugar”, explica o pesquisador.
Mesmo já tendo como encerrado seu mestrado, o biólogo pretende dar próximos passos de sua pesquisa com estudos moleculares, nos quais poderá validar os grupos encontrados e também procurar outros patógenos que esses ácaros podem carregar consigo. “Quem sabe, talvez, encontremos até mesmo vírus”, finaliza. O trabalho de Jacinavicius foi apresentado nas edições IV e V do Simpósio Brasileiros de Acarologia em 2013 e 2015, respectivamente, e no XVIII Congresso Brasileiro de Parasitologia, em 2014.