ISSN 2359-5191

24/11/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 115 - Saúde - Departamento de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional
Hanseníase vs Lepra
Grupo de pesquisa da USP luta contra falta de informação e desmitifica convenções em relação a doença
Campanha luta contra o preconceito contra hanseníase/Fonte: Reprodução

A hanseníase, antigamente conhecida como lepra, é uma doença que, não deveria, mas ainda é motivo de muita preocupação da Organização Mundial da Saúde (OMS), principalmente em países tropicais como o Brasil. O país é o segundo com mais casos de hanseníase no mundo, atrás apenas da Índia. Uma condição que pode ser explicada pela pobreza de ambos países, já que o que caracteriza a doença é o descaso da sociedade perante a ela. Classificada pela OMS como integrante do conjunto de doenças tropicais negligenciadas, a hanseníase tenta ganhar protagonismo através do estudo “Qualificar a demanda e conhecer as trajetórias das pessoas com hanseníase: contribuições para as políticas públicas de saúde”, realizado pelo Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da USP.

A pesquisa

A pesquisa foi realizada ao longo dos últimos três anos no Hospital das Clínicas (HC), onde se encontra um ambulatório dermatológico que é referência nacional no tratamento da hanseníase. Diferentemente da chamada lepra, em que uma série de doenças acabavam sendo acopladas no nome, inclusive doenças sexualmente transmissíveis, a hanseníase é uma doença causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, ou bacilo de Hansen, que se aloja na pele e em nervos periféricos. O principal sintoma é a perda de sensibilidade destas áreas, originando lesões. Por não sentirem a dor, acabam não buscando ajuda e estas lesões vão se agravando.

O estudo contou com uma série de etapas preparadas para que houvesse uma compreensão plena da complexidade do tratamento destas pessoas com hanseníase e que, com os resultados adquiridos, contribuir para a otimização do serviço realizado no HC. De início foi realizado um levantamento com os dados encontrados em pesquisas nacionais e internacionais sobre o assunto, em seguida outra pesquisa para conhecer as características dos pacientes do ambulatório. De acordo com Maria do Carmo Castiglioni, integrante do projeto, atualmente são 300 pacientes que frequentam o hospital, com um equilíbrio entre homens e mulheres. O que se destaca é que, pensando que o HC é referência no assunto, há um grande número de pacientes do interior de São Paulo e de outros estados, e que a maioria destes indivíduos tem baixa renda familiar.

Após realizar estas pesquisas iniciais, a equipe entrevistou os profissionais que trabalham no ambulatório. Nestas conversas verificou-se que, apesar das condições materiais e humanas não serem perfeitas, estes profissionais conseguem manter o ambulatório como referência no tratamento. Maria do Carmo fala sobre as limitações presentes no ambulatório: “Conseguem fazer o diagnóstico, mas em condições que não maravilhosas. O  ministério da saúde diz que o cuidado em hanseníase deve ser feito por uma equipe de vários profissionais. Terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, o médico, a enfermeira, a assistente social, a psicóloga, a farmacêutica. E ali, essa equipe ainda está se formando”. Apesar destas condições adversas, a pesquisadora destaca o excelente trabalho que se faz neste tratamento, dizendo que estes profissionais têm uma expertise no assunto. “Por exemplo, a dermatologista tem uma capacidade de saber discrimar o que é a hansen apenas analisando o tipo de marca na pele”.

Além das conversas com os profissionais, o diálogo com os pacientes foi crescendo e se destacando ao longo da pesquisa. As pesquisadoras entendem que ouvir o que estes pacientes tem a dizer é importantíssimo para entender a complexidade do tratamento. Pensando nestes pacientes, não é por acaso que a grande maioria seja composta por pessoas de baixa renda. Selma Lancman, coordenadora da pesquisa, fala que existem vários estudos que dizem que hanseníase tem muito a ver com pobreza. “Os países que resolveram este problema diminuíram automaticamente o número de casos”. Esta carcterística explica-se pela falta de informação vinculada à doença, é negligenciada midiaticamente. “Fala-se de aids, de tantos casos de câncer, mas se fala pouco de Hansen”, completa Selma. Até mesmo o nome da doença é pouco conhecida, sendo muitas vezes ainda reconhecida com seu antiquado nome, lepra. Esta falta de informação é a grande culpada pelo grande número de casos no Brasil. As pessoas que têm hanseníase, muitas vezes, demoram a perceber que uma mancha na pele, ou percebem e acreditam não se tratar de algo grave. Além disso, muitas não tem o acesso ao serviço de saúde, e as que tem podem encontrar um médico não capacitado que realize o diagnóstico incorreto. Há a desinformação tanto da população, quanto dos profissionais de saúde.

Preconceito é baseado em mitos

Ao longo da pesquisa, as integrantes contam sobre duas importantes dificuldades relacionados aos profissionais da saúde. O primeiro é o do caráter financeiro. “É difícil achar dermatologistas que queiram trabalhar com isso, a maioria dos dermatologistas quer trabalhar com estética, que da muito mais dinheiro”, conta Selma. A segunda trata-se do estigma que permeia a doença. “Tanto nós mesmos e nossos estagiários, profissionais que tem ido trabalhar lá, tem tido o problema das pessoas terem medo de se contagiar”, completa a coordenadora da pesquisa.

O descaso tem origem na maneira como a doença era tratada há décadas atrás, em que haviam cidades artificiais para que os pacientes ficassem isolados do restante da sociedade, tendo que cobrir seus rostos e carregar sinos anunciando que sua aproximação. Apesar da mudança de pensamento sobre a doença – inclusive uma mudança do nome –, o estigma que a doença carrega é muito forte. Nos grupos de conversa com os pacientes, as pesquisadoras passavam vídeos das antigas cidades artificiais para mostrar como o tratamento é diferente. Maria do Carmo conta que no primeiro momento os pacientes percebiam as mudanças, mas ao longo das entrevistas eles contavam: “Eu to fazendo um serviço pro meu cunhado, ai ele separou os pratos, eu durmo lá fora. Eu fico preocupado com meu neto que vai toda hora lá em casa, eu compro as maças pra ele e ele vai lá buscar. Será que ele vai ter a doença?”. Ou seja, apesar de aparentemente haver uma diferença, estas pessoas continuam sofrendo com o isolamento.

A compreensão da influência do estigma nestas pessoas é essencial para otimizar o tratamento. Juntamente com as dificuldades físicas que a doença e o tratamento trazem para o indivíduo, como o possível escurecimento da pele, há a dificuldade psicológica do tratamento. A hanseníase é uma doença que sempre acompanhará o paciente, por não haver uma cura, portanto, a vida desta pessoa sofre drásticas mudanças. Ao longo dos meses que se tomará a medicação não é permitido ingerir bebidas alcoólicas, e também há os possíveis efeitos colaterais que o remédio provoca. Além disso, muitas vezes perde-se o emprego, separa-se da família e dos amigos. Há um distanciamento das pessoas mais próximas, provocada pelo preconceito e desconhecimento em relação a doença.

O poder da informação

Diferentemente da época que a doença ainda era conhecida como lepra, atualmente os cientistas têm um conhecimento muito amplo da hanseníase. Um conhecimento que tem poder de acabar com o preconceito. “Já se sabe que hoje 90% da população mundial é imune. Entra em contato com o bacilo e não vai desenvolver estes sintomas, não vai desenvolver a doença”, explica Fernanda Cervenka, uma das integrantes da equipe de pesquisa. Além disso, o contágio não acontece apenas ao conversar com alguém com hanseníase, é preciso um convívio longo e intenso, como dormir no mesmo quarto que a pessoa ou trabalhar diariamente na mesma sala. Mas, mesmo assim, ao longo do uso da medicação ocorre a morte do bacilo, ou seja, não é mais possível transmitir a doença. São conhecimentos, que se fossem difundidos, diminuiriam drasticamente o preconceito.

É este poder da informação que pretende ser cada vez mais explorado pelas integrantes da pesquisa, que já produziram cartazes explicando sintomas e como realizar o diagnóstico em casa, além de um pequeno caderno que desmitifica algumas crenças e explica como funciona o contágio. Até, imãs de geladeira foram produzidos indicando como a pessoa deve tomar a medicação. “Ás vezes uma coisa tão simples como colocar um imã de geladeira muda muita coisa”, destaca Selma. Além destes materiais, o grupo realizou um seminário, no ano passado, sobre o assunto e pretende realizar outros eventos para obter cada vez mais alcance.

Mas a equipe já consegue perceber mudanças provenientes de sua pesquisa. De acordo com Maria do Carmo, os profissionais do HC começaram a compartilhar mais experiências, realizando reuniões de equipe. Já há, também, os grupos de apoio com os pacientes, que tem em mente realizar um completo acolhimento destas pessoas. São grandes passos dados através da pesquisa, pois como diz Selma, coisas simples podem promover grandes mudanças.


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