ISSN 2359-5191

07/12/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 124 - Sociedade - Instituto de Biociências
Mudanças alimentares em comunidades chilenas influenciam estado nutricional de sua população
Transformações na economia e política do Chile são motivos da mudança alimentar de comunidades milenares
Hábitos alimentares das comunidades/Fotos: Tamara Pardo e Andrea Molina

Pequenas comunidades indígenas latino-americanas são conhecidas por manterem os hábitos e costumes de seus antepassados. Muitas práticas permanecem nas diversas gerações durante milhares de anos, em uma mesma comunidade, e em uma mesma família. Essas afirmações, porém, confrontam-se nos dias de hoje com mudanças políticas e econômicas em muitos países latino-americanos com populações indígenas. A globalização também é um novo fator que tem influenciado as novas gerações de populações de áreas antes nunca atingidas.

As comunidades atacamenhas de Toconao e Talabre são conhecidas por possuírem hábitos alimentares semelhantes aos de comunidades andino-atacamenhos de mais de 3 mil anos de existência. Baseada na produção de cultivo agrícolas, e realizando-a de acordo com a técnica de melgas e andenes, os habitantes produziam diversos alimentos de origem pré-hispânico como milho, batata, quinoa, bem como  frutas de origem hispânico destacando a laranja, pera, granada, entre outros.

A caça de animais da região, (como vicunha e vizcacha), e a coleta de ovos de aves nativas como o flamengo e nhandu cordilheirano (conhecidos como parina e suri pelos seus habitantes) também faziam parte dos alimentos tradicionais dos atacamenhos de Toconao e Talabre.

Além disso, ocorria na região do Salar de Atacama as feiras de trocas, em que outras comunidades traziam seus alimentos locais, e trocavam por frutas e outros produtos alimentares. Essa prática também era milenar, e reunia povoados que hoje em dia se localizam no Noroeste da Argentina e no Sul da Bolívia.

As mudanças econômicas e políticas ocorridas no Chile nas últimas décadas, porém, alteraram as relações entre as comunidades e seus hábitos alimentares, prejudicando permanentemente sua cultura milenar e até mesmo seu estado nutricional.

A bioantropóloga Tamara Prado, em sua tese de mestrado realizado no Instituto de Biociências da USP, analisou de que forma as mudanças sociais, econômicas e políticas influenciaram a mudança alimentar em duas comunidades indígenas no deserto do Atacama, no Chile.

A região atacamenha é rica em recursos mineiras, como o salitre e o cobre. Em 1990, jazidas de lítio começaram a ser exploradas na região do Salar de Atacama, e trouxeram um novo formato de sociedade e consumo nas comunidades próximas. Muitos moradores deixaram de ser agricultores e pastores de gado para se tornarem mineradores, e novos estabelecimentos comerciais se instalaram na região. Com isso, ocorreu a chegada de alimentos industrializados (processados e ultraprocessados), como o arroz, macarrão e refrigerante. Essas já não eram mais comunidades isoladas.

Ao mesmo tempo, na área do deserto de Atacama foi estabelecida uma zona de reserva natural: a Reserva Nacional Los Flamencos. Com o objetivo de proteger e preservar a fauna e a flora da região, a caça dos animais e a coleta de ovos de aves nativas foi proibida.

Na mesma época, o país passou por uma reforma agrária, se estabeleceu o Serviço Agrícola Granadero (SAG). Dentre as medidas do novo programa, decretou-se um maior controle no intercâmbio de alimentos não produzidos no país de origem animal e vegetal. Com isso, as feiras de troca entre as comunidades enfraqueceram-se, dificultando a rede de intercâmbio de alimentos realizada entre os atacamenhos.

A reforma educacional realizada pelo Estado no mesmo período também trouxe consequências para a alimentação da população do deserto. Com o novo projeto de escolas de período integral, a alimentação dos alunos foi terceirizada para empresas que não utilizavam os recursos advindos do local (como a batata e a carne de lhama). Com isso, as crianças passaram a se alimentar de produtos industrializados, ricos em sódio e em açúcar.

Consequências

Para avaliar as mudanças alimentares na comunidade, Tamara realizou entrevistas com os moradores da comunidade, além de analisar os dados antropométricos de estatura e peso dos atacamenhos em estudo no posto de saúde da comunidade.

Dividindo os habitantes de acordo com três grupos etários (de até 25 anos, entre 26 e 50 anos, e 51 anos ou mais), as questões levantadas para os moradores giravam em torno da mudança alimentar ao longo de sua vida. “Queríamos entender a mudança na alimentação por gerações. Por isso realizamos perguntas para que os moradores entregassem uma perspectiva histórica da mudança de sua alimentação”, explica a bioantropóloga. Utilizando o método conhecido como Índice de saliência cognitiva (priorização da ordem ao falar dos alimentos), a pesquisadora pôde concluir que a geração que mais alterou sua alimentação foi a mais velha. “Quando perguntados sobre o que comiam na infância, a geração mais velha respondia quase que imediatamente carne de lhama e milho. Já as novas gerações respondiam que consumiram na infância os mesmos alimentos que consomem hoje, como arroz, macarrão e refrigerante”, comenta a bioantropóloga. Para ela, isso se explica porque as duas últimas gerações já nasceram e cresceram no ambiente modificado pela economia e pela política do país.

Mas não foi somente nas entrevistas que foi possível identificar as mudanças ocorridas nestas comunidades. Em uma terceira fase da pesquisa, a bioantropóloga sistematizou e analisou os dados antropométricos obtidos no posto de saúde local, identificando mudanças na estatura das diferentes gerações de atacamenhos. Nutrindo-se de alimentos fortificados nas escolas, as gerações de até 25 anos e de até 51 anos possuem maior estatura que a geração mais velha. Tamara explica que a nova alimentação influenciou no comportamento do potencial de estatura da população.

“As pessoas nascidas em 1920, por exemplo, não puderam explorar completamente seu potencial genético de estatura devido à falta de alguns nutrientes. Eles, portanto, são mais baixas que seus filhos e netos”, comenta a pesquisadora. Em suma, a pesquisadora explica que na situação em que a alimentação sofre variação de disponibilidade, o potencial genético não se expressa em sua máxima estatura.

Para Tamara Pardo, a conclusão mais importante do estudo é que as mudanças políticas e econômicas alteram a alimentação das comunidades de Talabre e Toconao. Para ela, essas mudanças afetam a alimentação, e ao mesmo tempo significaram mudanças em sua cultura e tradições milenares. “Há uma perda considerável do conhecimento ancestral na produção de alimentos”, conclui.

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