A raiva é uma doença que, atualmente, causa impacto econômico negativo na pecuária brasileira. Endêmica em todo país, é responsável por cerca de 78 morte ao ano apenas na área rural do Espírito Santo, sendo bastante expressiva entre asdoenças infecciosas as quais acometem herbívoros domésticos. Hoje em dia, o principal trasmissor da raiva no ciclo do campo é o morcego hematófago Desmodus rotundus, cuja principal forma de combate é a pasta vampiricida. A médica veterinária Ana Carolina Pisa, em seu mestrado pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, estudou o impacto dessa medida de controle da raiva na região rural do estado.
O vírus da raiva é transmitido aos mamíferos através da mordida desses morcegos, que se alimentam principalmente do sangue de bovinos. Ele se multiplica no local da inoculação, encaminhando-se às terminações nervosas e, em seguida, ao sistema nervoso central. Uma vez lá, ele se replica e começa a causar os sinais clínicos conhecidos da doença, como falhas na coordenação, dificuldade para se locomover e se manter em pé e salivação. O curso clínico da doença, que é fatal, é bastante curto e, em cerca de três a dez dias, o animal morre. Não existe tratamento, mas sim prevenção: a pasta vampiricida, feita a partir de uma substância anticoagulante, é apontada pela legislação brasileira como principal medida de controle da raiva transmitida por morcegos hematófagos, além da vacinação.
Funcionamente da pasta
"Esses morcegos se alimentam exclusivamente de sangue e, de preferência, sempre no mesmo animal e lugar", relata Ana Carolina. Por conta disso, uma das formas de aplicação da pasta é no local da ferida, já que, após alguns dias, o animal voltará nessa mesma ferida e acabará entrando em contato com a substância. Outra maneira é realizar a captura de morcegos — ou no abrigo onde eles vivem ou no curral onde se alimentam — com redes e aplicar a pasta no dorso deles, soltando-os para que voltem à sua colônia e façam com que outros morcegos também entrem em contato com ela. "Chamamos isso de tratamento, mas, na realidade, o efeito da pasta vampiricida é justamente matar esses animais transmissores da raiva", explica.
Ana Carolina trabalhou durante dois anos no Espírito Santo estudando dados do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf) sobre todo o estado. Eles foram coletados de várias propriedades, a partir de formulários de investigação inicial da doença nos quais se tem o atendimento a uma suspeita de raiva — com confirmação laboratorial posterior — associado a uma coordenada geográfica daquela propriedade, para apontar onde aconteceu esse foco. A pesquisadora utilizou essas informações sobre as localidades onde há certeza de ocorrência da doença e as cruzou com as localizações onde houve o uso da pasta vampiricida em morcegos. “A intenção desse cruzamento era ver se de fato houve o controle da raiva onde havia sido usada a pasta”, completa.
Impacto limitado
Ela classificou o impacto do uso da substância de acordo com o número de morcegos tratados e a distância entre esses pontos de tratamento. Os resultados apontam que a eficácia do uso da pasta vampiricida parece ser associado ao número de morcegos hematófagos tratados com ela — quanto maior o número desses animais, maior a chance de não ocorrer foco da raiva naquela região. Contudo, esse impacto é bastante limitado espacialmente, porque ele atingirá no máximo dois ou três quilômetros ao redor daquela área. Precisaria-se tratar um grande número de morcegos, em locais mais próximos uns dos outros, para haver um grande melhora no quadro atual.
“Basicamente, quando a pasta foi aplicada em um pequeno número de animais, os focos continuaram a existir. O controle só aconteceu quando a medida foi aplicada em muitos deles, fazendo com que a doença deixasse de acontecer naquela região e seus arredores”, explica. A pesquisadora ainda acrescenta que, caso se faça o uso da pasta vampiricida em um número adequado de morcegos, a área protegida por esses tratamentos será restrita. Além disso, tratar muitos morcegos é uma tarefa bastante complicada.
Para conseguir um grande número deles, é preciso de uma equipe de captura que vá a campo e ache um abrigo — o qual, muitas vezes, está no meio da mata, em locais de difícil acesso. Isso dificulta também, de certa forma, o controle da doença. Na maioria das vezes, poucos aminais são capturados, e quase sempre são aqueles que estão em locais de descanso entre a colônia e o campo onde conseguem alimento. A pesquisa observou que em apenas cerca de 27% das vezes se trata um número maior que cinco morcegos. “Achá-los talvez seja o fator mais limitante, juntamente com a falta de conhecimento a respeito de sua dispersão e, por consequência, do vírus”, conclui.