ISSN 2359-5191

30/03/2016 - Ano: 49 - Edição Nº: 28 - Ciência e Tecnologia - Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia
Técnicas com cadáveres reformulam e trazem mais ética ao ensino da Medicina Veterinária
Com os resultados obtidos nos últimos anos, novos métodos reduziram expressivamente o número de cobaias vivas utilizadas pela FMVZ
Foto: World Animal Protection

Até o final dos anos 90, o ensino de procedimentos cirúrgicos na Medicina Veterinária era integralmente realizado com animais vivos. Oriundos do Centro de Controle de Zoonoses, a antiga “carrocinha”, muitos deles eram utilizados nas aulas práticas de Técnica Cirúrgica e, invariavelmente, eutanasiados ao final das exposições. Desde então, sensibilizada por essas condições, a professora Julia Maria Matera, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, vem desenvolvendo novas técnicas com cadáveres a fim de trazer mais ética e conforto à prática cirúrgica.

Apesar do uso de animais em ensino e pesquisa ser secular, desde os seus tempos de graduação Julia Matera o considera irracional. “Conforme os anos vão passando, percebe-se o nível de desrespeito médico e a falta de respeito à vida. Ao entrar numa área médica para tratar e cuidar, é inviável colocar vários animais sob a pena de morte para aprender. Por conta disso, eu tinha uma visão de que havia outras formas de se aprender sem ter de matar ou prejudicar ao outro”, elucida ao exemplificar como pode ser traumático para um animal ser apalpado diversas vezes na disciplina de Reprodução.

De acordo com o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), há, no Brasil, 192 instituições de ensino superior de Medicina Veterinária registradas. Em um cálculo rápido, Julia contabilizou que, levando em consideração a média anual de animais vivos utilizados em aulas, cerca de 46 mil são eutanasiados por ano.

Ao longo de 15 anos estudando técnicas alternativas com cadáveres de felinos, caninos e equinos, os resultados obtidos em pesquisas de iniciação científica, teses e dissertações reduziram expressivamente o número de animais vivos utilizados pela FMVZ. “Nós estamos completando 16 anos [do uso de métodos substitutivos], mas tem instituição que está começando agora. Nesse período, temos observado que o aprendizado vem crescendo e melhorando, já que os próprios estudantes não querem usar um animal saudável para aprender”, declara. De acordo com uma pesquisa realizada em campo, 93% dos alunos aprovam o novo tipo de treinamento. “É uma metodologia simples, mas que te dá a possibilidade de repetição numa qualidade de ambiente melhor. Isso faz com que as pessoas se sintam melhor com elas mesmas”, explica Julia.

Lidando com desafios
Considerando as características climáticas do Brasil enquanto sendo um país tropical, o método só foi possível graças ao desenvolvimento de uma técnica de preservação que barateou o custo do procedimento e melhorou sua qualidade. A Solução de Larssen Modificada, como é chamada, traz em sua composição formalina, glicerina líquida, hidrato de cloral, sulfato de sódio, bicarbonato de sódio e cloreto de sódio diluídos em água destilada.

Ao ser diagnosticada a morte do animal, é efetuada uma lavagem de seu circuito vascular. Através do mesmo grande vaso por onde é retirado o excesso de sangue, é injetada a solução em todo o sistema circulatório, o que faz com que a cobaia não se deteriore e ainda possa ser congelada e descongelada de 8 a 10 vezes. Com isso, se antes a Faculdade utilizava entre 300 e 400 cães, atualmente a taxa anual é de 40 cadáveres para uma turma de 80 alunos.

Um dos pontos importantes do método está em seu baixíssimo custo de R$42 para o preparo. “Qualquer faculdade que quiser fazer, pode. Quando é utilizado o método tradicional de ensino, se for colocado na ponta do lápis o custo de animal, qualidade de ração, de ambiente que você precisa ter e uma série de outras coisas, o custo é bem mais alto. Eticamente, ele também é bem complicado”, reforça a pesquisadora.

Além disso, a técnica é eficiente ao possibilitar ao cadáver condições de similaridade bastante próximas dos animais vivos, principalmente no que confere a coloração e consistência dos tecidos. Desta forma, a preservação possibilita treinamentos e abordagens cirúrgicas mais vantajosos por viabilizar a repetição sem maiores danos, uma vez que, caso haja necessidade de repetir o procedimento por algum erro médico, as correções não são realizadas em animais vivos.

Pelo fato da Solução de Larssen Modificada ter sido tão bem sucedida, frequentemente a professora Julia Matera é procurada por profissionais da área médica que se interessam em testar o modelo de preservação em humanos, já que é ainda mais difícil conseguir esses cadáveres.

Aprimoramentos mais recentes
Outro grande desafio enfrentado pela pesquisadora no processo de aceitação de sua pesquisa era a inexistência de sangramento nos cadáveres quimicamente preservados, o que impossibilitava os alunos de aprenderem a lidar com a hemostasia (tempo cirúrgico), por exemplo.

Para isso, Julia, com o auxílio da mestranda Maria Claudia de Campos Mello Inglez de Souza, desenvolveu uma bomba de propulsão capaz de bombear sangue artificial durante o procedimento cirúrgico. Feito com um corante à base de água e soro fisiológico, o líquido encontra-se descrito na tese “Desenvolvimento e avaliação de método substitutivo para a prática da hemostasia em cadáveres quimicamente preservados”.

Essa nova solução, por diminuir o distanciamento da prática em cadáveres e animais vivos ao induzir sangramento nas vísceras, cavidades e estruturas durante a manipulação, garantiu à Julia Matera o 1º lugar no concurso “Métodos substitutivos ao uso prejudicial de animais no ensino humanitário da Medicina Veterinária e Zootecnia na América Latina”, realizado pela World Animal Protection.

A premiação também incluiu outros modelos que substituem o uso prejudicial de animais em aula, entre eles o Jerry, um manequim de 26 mil dólares utilizado como simulador durante as aulas de Técnica Cirúrgica. “Quando entrei no concurso, o objetivo era conseguir esse manequim para a Faculdade. Com esse cão é possível aprender todas as auscultas de ruídos pulmonares e cardíacos, o que é bastante difícil de ser ensinado ao aluno. Ele tem uma programação para auscultar em diferentes posições do manequim, inclusive nos espaços intercostais”, conta Matera.

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