Considerada a segunda maior causa da perda de biodiversidade da natureza depois do desmatamento, as espécies invasoras são um risco iminente capaz de provocar danos econômicos, sociais e até mesmo culturais nos territórios onde se instalam. Dentro desse contexto, com a ocupação ocorrida no Arquipélago de Fernando de Noronha nas últimas décadas, a ameaça predatória de natureza exótica vem apresentando riscos para espécies locais, que encontram dificuldade para sobreviver no arquipélago.
Buscando entender melhor esse cenário e reverter o processo que tem colocado em perigo a sobrevivência de alguns animais selvagens, como é o caso de atobás e rabos-de-junco, o projeto Espécies Invasoras e suas Implicações na Conservação da Biodiversidade e na Saúde Pública em Ambientes Insulares tem levantado informações sobre a biologia de espécies endêmicas e residentes, como a mabuia e aves marinhas, em paralelo à de animais exóticos, a exemplo de gatos, ratos, teiús e mocós.
Atobá-grande (Sula dactylatra). / Imagem: Ricardo Augusto Dias
“O projeto envolve o entendimento do impacto da introdução destas espécies na fauna local e na saúde das populações de animais e humanos no arquipélago”, conta Ricardo Dias, pesquisador da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, um dos responsáveis pela ação. Ricardo explica que, ao lado de Jean Carlos Ramos da Silva (UFRPE) e de estudantes do Programa de Pós-Graduação, ambos membros do Instituto Brasileiro para Medicina da Conservação (Tríade), os resultados obtidos com o projeto em andamento possibilitarão a elaboração dos primeiros planos de manejo de espécies invasoras em unidades de conservação no Brasil. “[Também] contamos com a colaboração técnica de um dos pesquisadores mais conceituados mundialmente no tema invasão biológica em ilhas, o professor James Russel, da Universidade de Auckland, que nos visita anualmente.”
Contando com o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), um dos responsáveis pela gestão de Fernando de Noronha ao lado da Administração do Distrito Estadual de Pernambuco, os planos de manejo envolvem uma gama de opções possíveis, que vão desde a remoção ao controle populacional dessas espécies. “Cada opção será acompanhada de uma análise de viabilidade com previsão de esforço necessário, efeito esperado e custos”, aponta. “A decisão pela implantação dessas medidas será fortemente influenciada por nós, mas a tomada da decisão final caberá aos gestores da ilha.”
Vale lembrar que, no Brasil, a invasão biológica é um tema pouco explorado tanto na Medicina Veterinária, quanto em outras áreas, ainda que se trate de um dos maiores desafios para a manutenção da saúde ambiental, humana e animal a ser enfrentado no futuro, como afirma Dias.
Rabo-de-junco de bico laranja predado por gato. / Imagem: Ricardo Augusto Dias
Além de proporcionar ganhos ambientais para a população animal local, um dos efeitos igualmente esperados pelo estudo é a promoção da saúde pública através da redução do risco de transmissão de doenças. Instigados a unir o conhecimento específico da Epidemiologia à Ecologia de espécies, incluindo a de natureza humana para o entendimento do processo saúde-doença, o foco dos diagnósticos das doenças desses animais tem se voltado às zoonoses, doenças naturalmente transmitidas entre animais e o homem.
“Um interesse essencial da equipe é verificar o risco de manutenção e transmissão delas à população residente da ilha, em especial a toxoplasmose, a leptospirose e a salmonelose”. Para isso, além do trabalho de campo da equipe da FMVZ e do Instituto Tríade, os diversos laboratórios de diagnóstico da Faculdade estão sendo mobilizados também.
Economicamente, Ricardo Dias acredita que a garantia do equilíbrio ecológico, sanitário e organizacional é essencial para que Noronha continue sendo um destino turístico mítico.
Apesar do projeto ser entremeado por subprojetos voltados a grupos de animais mais específicos, seus objetivos são semelhantes. “Inicialmente, estamos preocupados com a determinação do número de indivíduos, distribuição e densidade de cada espécie invasora no arquipélago”. Ricardo confirma que espécies invasoras comportam-se de uma forma distinta em ambientes insulares e a sua biologia será determinada previamente a cada ação de controle.
Até agora, os pesquisadores já possuem resultados em fase de elaboração de artigos científicos com relação ao dimensionamento do problema, assim como propostas de encaminhamento para ações de controle de gatos e ratos. Em breve, os projetos relacionados aos teiús e mocós, que se encontram em finalização, também serão publicados.
Metodologia e desafios da pesquisa
Para a realização das atividades de pesquisa, diversas metodologias são empregadas. Uma delas conta com o monitoramento das populações adaptado a cada uma das espécies, o qual fornece dados sobre o tamanho e a dinâmica das populações das espécies invasoras e das nativas.
“Em seguida, capturamos indivíduos de cada espécie para realização de medições biométricas e coletas de amostras biológicas para análises clínicas e diagnósticas”, afirma Ricardo ao dizer que, tendo em mãos a possibilidade de avaliar tanto a dinâmica populacional, quanto das doenças através de modelagens matemáticas, viabiliza-se, então, a construção um modelo integrando os dados das espécies invasoras e nativas.
“Finalmente, de posse destes modelos, poderemos simular diferentes intervenções de manejo e calcular o esforço necessário para a erradicação das espécies invasoras e o custo de cada alternativa de manejo.”
Em relação aos principais desafios encontrados, o pesquisador destaca a falta de apoio oficial da Administração do Distrito Estadual de Fernando de Noronha, que, sob sua visão, é contrabalançada pelo apoio do Parque Nacional Marinho e da Área de Preservação Ambiental de Fernando de Noronha, ambos sob coordenação do ICMBio. “A falta de recursos para pesquisa tem influenciado enormemente as atividades dos projetos, mas com muita criatividade e esforço, temos conseguido financiamentos, seja no Brasil ou no exterior”.
Equipe do Instituto Brasileiro para Medicina da Conservação (Tríade) manejando um mocó. / Imagem: Ricardo Augusto Dias
“Além disso, os custos locais dificultam que mais campanhas de campo possam ser realizadas por ano, que equipamentos sejam levados ao laboratório e a própria manutenção dos pesquisadores na ilha, para se alimentar, alojar e locomover”. Em Noronha, por exemplo, por haver um único posto de gasolina na ilha, o combustível custa o dobro do que é cotado no continente. Nesse sentido, o ICMBio oferece apoio logístico, alojamento e financiamento direto.
Com o término dos projetos em curso, Dias espera que o conhecimento acumulado com a experiência possa ser utilizado em projetos futuros na área de conservação da biodiversidade promovidos pelas instituições de pesquisa envolvidas. “Minha expectativa é que as ações de controle das espécies invasoras sejam, de fato, instituídas e mantidas pelos gestores da ilha, garantindo a saúde ambiental, humana e animal em Fernando de Noronha.”