Em sua dissertação de mestrado, Diários fotográficos de bicicleta em Pernambuco: os irmãos Ulysses e Gilberto Freyre na documentação de cidades na década de 1920, Luciana Cavalcanti Mendes estuda 84 imagens feitas pelo fotógrafo amador Ulysses Freyre, durante passeios de bicicleta aos domingos ao lado do irmão, o sociólogo Gilberto Freyre, sobre as cidades Olinda e Recife entre 1923 e 1925. O objetivo da pesquisadora é explicitar os dois usos de Gilberto às fotos de Ulysses: como parte da concepção de inventário de edificações da arquitetura civil que serviu à Inspetoria de Monumentos Estaduais três anos depois em Pernambuco, e como base aos desenhos de Manoel Bandeira para o Livro do Nordeste publicado pelo Diário de Pernambuco. Um de seus legados mais importantes, porém, é revelar a fotografia de Ulysses como base de matérias que alimentam o movimento artística-político-intelectual guiado por Gilberto neste período.
Da esquerda para a direita: Ulysses Freyre, Carlos Lemos e Gilberto Freyre com suas bicicletas em um de seus passeios fotográficos. Reprodução do acervo da Fundação Gilberto Freyre
Fotografia e patrimônio
Recife foi uma cidade transformada rapidamente. Desde a chegada dos holandeses no século 17, até as novas e crescentes edificações a serem levantadas a cada dia do nosso tempo. A fotografia se mostra um agente importante na representação das cidades, contribuindo para a criação de uma memória da população, preservando momentos e cenas, transformando-os em patrimônio.
Daí a importância da fotografia de anônimos e amadores: é documento histórico significativo da rotina, de lugares e de monumentos, por isso faz-se tão importante estudá-la. O que Ulysses fotografava era o cotidiano sob olhar do nativo, com seu conhecimento e intimidade. Diferentemente dos fotógrafos profissionais, que buscavam planos altos e aéreos para forjar a visão de grandiosidade e de extensão de nossas ruas, de modo à vender esta ideia da perfeição e imponência, embelezando tudo o que era visto e documentado.
A Casa do Carrapicho, onde moraram os irmãos Freyre, onde Gilberto finaliza a obra Casa-Grande & Sensala
Foto: Ulysses Freyre. Reprodução do acervo da Fundação Gilberto Freyre
O Livro do Nordeste
Em 1925, Gilberto Freyre é convidado pela direção do Diário de Pernambuco para organizar e sistematizar o Livro do Nordeste, edição comemorativa do centenário do jornal. Lá, foram publicados cerca de 30 textos, dos quais sete são de autoria de Gilberto. O Livro do Nordeste conta com 92 desenhos de Manoel Bandeira entre a capa, vinhetas, símbolos e desenhos de arquitetura religiosa e civil, inspiradas nas fotografias de Ulysses.
Desenhos do Livro do Nordeste. Ilustração: Manoel Bandeira
Reprodução do acervo da Fundação Gilberto Freyre
Na análise de Luciana, existe um destaque à geografia afetiva que há no trabalho de Gilberto e Ulysses, que inspira a obra do irmão escritor. Essa produção, inserida num rico contexto cultural dos anos 20, contribuiu para o movimento Regionalista artístico brasileiro e para a ampliação do que é o Nordeste no imaginário popular. “Estudamos no Brasil o Regionalismo na literatura e nas artes. Porém, somente há menos de duas décadas que se enxerga essa perspectiva também existente no jornalismo na década de 1920 e em confluências de ideias políticas, principalmente a partir dos estudos de Gilberto Freyre”, diz a pesquisadora que, enquanto pernambucana, fotógrafa, jornalista e ciclista, tal qual Ulysses, encontrou nesta pesquisa um “ato prazeroso e quase natural”.
Engenho Megahype. Baseado em fotografia de Ulysses Freyre. Ilustração: Manoel Bandeira
Reprodução do acervo da Fundação Gilberto Freyre
Ineditismo
Este acervo fotográfico específico dos irmãos Freyre até o momento não foi investigado em outros estudos. São 37 cliques de fachadas e ruas, e 47 de detalhes da arquitetura da época. As fotografias, hoje, estão no acervo da Fundação Gilberto Freyre, em Recife. A série completa e a pesquisa serão reveladas em conjunto ao público pela primeira vez no dia 5 de setembro, no XXIII Encontro Regional da Anpuh São Paulo, no Simpósio Temático Cultura Visual, Imagem e História. O evento, que acontece na cidade de Assis (SP) nos dias 5 a 8 de setembro, busca congregar pesquisas realizadas no campo da história, que tomem os fundamentos da cultura visual como premissa de investigação, e é coordenado por Eduardo Augusto Costa, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e Erika Zerwes, professora do Museu de Arte Contemporânea da USP.