Quando o assunto é dependência química, as mulheres representam um dos maiores grupos de risco no Brasil. Apesar das taxas de consumo de substâncias de abuso entre as mulheres se aproximarem cada vez mais dos homens, elas ainda bebem menos, mas adoecem mais cedo e de forma mais grave. Ainda assim, a dependência feminina começou a ser amplamente discutida apenas nos últimos 50 anos, enquanto as abordagens específicas que atendem ao grupo, há 20.
As drogas mais recorrentes no grupo são o álcool, tabaco, cannabis e solventes. Além disso, o consumo de benzodiazepinicos (calmantes) é três vezes maior por mulheres do que por homens, perdendo apenas para as anfetaminas, consumida cinco vezes mais pelo público feminino. Ainda que pesquisas apontem um consumo maior por pessoas em situação de rua do que a população geral, ao fazer uma análise por classe econômica, infere-se que mulheres de classe A e B usam mais drogas do que jovens das classes D e E.
Entre os anos de 2006 e 2012, o consumo feminino de drogas e bebidas alcoólicas teve os maiores índices de aumento. No Nordeste, as mulheres usuárias de crack chegam a fumar em média 21 pedras por dia, enquanto os homens fumam 13. Os dados, levantados pelo Lenad (Levantamento Nacional de Álcool e Drogas) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostram a importância de se entender o estigma social e as diferenças do tratamento entre homens e mulheres dependentes de substâncias psicoativas.
Segundo a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o índice do vício em crack entre as mulheres é de 74%, enquanto o de homens é de 29%. Foto: Bergamo Marlene/Folhapress
Diferentemente dos homens, a utilização de drogas é vista como incompatível com o papel da mulher, segundo o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT). A maternidade e o receio de serem consideradas incapazes de cuidar dos filhos são alguns dos fatores que levam mulheres a não submeterem-se ao tratamento adequado.
“Enquanto, mundialmente, um em cada três usuários de drogas é mulher, apenas um em cada cinco usuários de drogas em tratamento é mulher", disse o diretor executivo do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), Yury Fedotov, em seu discurso sobre o Dia Internacional contra o Abuso e o Tráfico Ilícito de Drogas.
A Fiocruz concluiu, em 2012, que 55,36% das mulheres consumidoras de drogas tendem a financiar seus hábitos de consumo através da prostituição. Essa fonte de rendimento contribui para o aumento da transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e implicações de violência no gênero. As razões que levam as mulheres a iniciarem o uso de drogas, por sua vez, diferem das dos homens. Elas relatam mais problemas intrapsíquicos, como depressão, sentimentos de isolamento social, pressões familiares e problemas de saúde. Homens justificam-se pelos efeitos da intoxicação propriamente dita, além de dificuldades profissionais e financeiras.
O sentimento de culpa é uma constante. Segundo uma pesquisa da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, os conflitos com a família são grandes e o abandono por parte do companheiro se dá em certos casos. Julgadas pela sociedade como promíscuas, amorais e irresponsáveis, mulheres dependentes sofrem com a negação e ocultação da situação, enquanto homens recebem, diariamente, maior mobilização para tratar o problema — seja da família, da medicina ou da própria mídia.
Estigmas sociais e usuárias
Apesar de haver estudos que analisam a dependência química com o recorte de gênero, em geral as pesquisas tendem a padronizar o vício sem discutir o que é específico de cada gênero. Com isso, não se reconhece as peculiaridades da dependência em mulheres e o modelo de tratamento acaba não sendo adequado para atender suas necessidades.
A psicóloga Katia Varela, que trabalha no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), estudou as especificidades da dependência química em mulheres em seu doutorado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Para isso, ela acompanhou um grupo psicoterapêutico para mulheres em um Caps AD pelo período de um ano.
As diferenças entre homens e mulheres começam já no consumo das drogas. Em relação ao álcool, as mulheres tendem a beber de forma mais solitária e escondida, ocultando as bebidas nas áreas em que elas têm mais acesso dentro de casa, como a máquina de lavar ou a despensa. Essa discrição no consumo da droga faz com que a família demore para perceber o vício.
O uso do crack tem uma realidade muito específica, já que muitas das usuárias estão em situação de rua e ficam ainda mais vulneráveis do que os homens. “Elas estão mais expostas à violência sexual e chama a atenção o fato de elas receberem dinheiro ou drogas em troca de sexo”, afirma Katia.
Por sua vez, o uso da cocaína é, em geral, motivado pelo parceiro. “Observa-se que a mulher acaba usando para experimentar e desenvolve a dependência”, explica a psicóloga. Contudo, dificilmente ele estará ao lado dela durante o tratamento. “São raros os casos em que há a presença significativa do homem como apoio no tratamento da mulher, ao contrário dos homens, que sempre estão acompanhados”.
Além do abandono pelo parceiro e pelos familiares, as usuárias enfrentaram ou enfrentam situações de violência. De acordo com uma pesquisa feita com usuárias por Beatriz Cesar, autora do artigo “Alcoolismo feminino: um estudo de suas peculiaridades”, 70% das entrevistadas afirmaram ter sofrido violência física/sexual na infância/adolescência e 80% afirmaram ter sofrido violência doméstica por parte do parceiro.
A usuária portanto sofre uma discriminação multiplicada, já que elas são marginalizadas por serem dependentes e por enfrentarem um estigma social. Este estigma é fruto das exigências impostas pela sociedade às mulheres, como o dever de se cumprir os papeis de mãe, esposa e dona de casa. Essa discriminação, que parte não só de outros usuários como também de profissionais da saúde, é um dos fatores que dificultam o tratamento.
A violação de direitos das dependentes ilustra como isso afeta as usuárias de drogas. Muitas mulheres, principalmente aquelas que consomem crack, sofrem a perda compulsória da guarda dos filhos sem ao menos passar por uma avaliação prévia. “Essa violação parte de uma ideia de que essa mulher não será uma boa mãe por ser usuária quando, na verdade, observa-se que muitas vezes o vínculo com essa criança é o que faz ela vir ao tratamento”.
Ideia de que usuárias não seriam boas mães viola seu direito à maternidade. Na imagem, gestante moradora da Cracolândia Foto: Fábio Braga/Folhapress
"A questão de ser usuária de drogas ilícitas vai completamente contra a imagem que se tem da mulher cuidadosa, maternal e dona do lar. Elas se sentem muito mal por não preencherem esses quesitos do que seria o 'papel feminino'", alega Fabio Carezzato. Ainda que sejam constantemente renegadas da maternidade, o médico também destaca a gestação como uma das principais motivações para que elas procurem ajuda. "A dependência por si só não é motivo de afastar crianças de suas mães. As pacientes que eu acompanho e que engravidam durante o tratamento, por exemplo, muitas vezes apresentam uma melhora relacionada a esse fator", conclui.
Em grupos mistos, ou seja, que recebem homens e mulheres, as dependentes do sexo feminino são minoria muito por conta desse tipo de julgamento. “Observávamos que ou elas desistiam logo no começo ou permaneciam em silêncio sem conseguir se manifestar”, aponta Katia. “As que conseguiam expressavam-se de uma forma mais combativa e agressiva para que fossem escutadas e mantivessem seu lugar”.
A psicóloga acrescenta que, tanto por sua experiência profissional quanto pela literatura científica, há uma indicação a grupos homogêneos de tratamento, isto é, grupos compostos por pessoas do mesmo gênero. “Neste local, a mulher se sente mais segura, mais acolhida e tem maior liberdade para falar de suas próprias dificuldades cotidianas”, explica.
Outra pressão social que leva as mulheres ao vício é a questão estética. “Muitas começaram a usar cocaína porque diminuía o apetite e, com isso, iriam emagrecer, o que era esteticamente importante para elas”, afirma Katia. “Esse dado é comum entre as mulheres, mas não é visto nos homens como causa central do uso da droga”. Dessa forma, as dependentes não conseguem se reconhecer e sua autoestima fica prejudicada.
O Promud
Desde 2004, ano em que foi promulgado o realinhamento político de atuação proposto pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), a Política Nacional sobre Drogas passou a estabelecer novos fundamentos, diretrizes e estratégias voltados para a redução da demanda e da oferta de drogas no país.
Entre os pilares do documento, está a promoção e garantia, em rede nacional, de ações para tratamento, recuperação, redução de danos e reinserção social dos dependentes químicos. De acordo com a Política Nacional sobre Drogas, esses serviços devem ser disponibilizados através de Unidades Básicas de Saúde (UBSs), ambulatórios, Caps, Caps AD, comunidades terapêuticas e grupos de auto-ajuda, além de hospitais gerais e psiquiátricos e clínicas especializadas.
Atualmente, o Brasil dispõe de 59 unidades do Caps AD distribuídas por todo o território. Ainda que seu público específico seja composto por adultos, e embora concessões autorizadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) permitam a participação de menores de idade, os tratamentos oferecidos não são categorizados por gênero.
Fábio Carezzato, médico psiquiatra do Programa da Mulher Dependente Química (Promud) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, em concordância com Katia Varela, reforça como esse fator pode afetar o desenvolvimento terapêutico das mulheres participantes. “Em geral, os homens falam de drogas, de uso e de uma valorização desse submundo, enquanto as mulheres apresentam questões de maternidade, relacionamentos, família e trabalho. Por gostarem de falar de assuntos gerais, elas ficam muito acuadas nesses grupos, sem muito espaço para isso”.
Dentro desse cenário composto predominantemente por serviços mistos, Promud surge em 1996 como “um programa de tratamento para o atendimento exclusivo de mulheres com diagnóstico de Transtorno de Dependência de Substâncias Psicoativas”.
“Com o estudo da Patrícia Hochgraf [coordenadora médica do Programa], que levou à formação do Promud, identifica-se que um serviço especializado em mulheres dá uma aderência muito maior a elas. Além de ficarem por mais tempo no tratamento, ele tem resultados mais positivos que em serviços mistos”, afirma Carezzato.
Mesmo que o desenvolvimento mais recente de serviços especializados aconteça, por muitos anos o Promud se estabeleceu como o único do tipo no Brasil. Nesse sentido, Fábio explica que a dependência química ainda é vista como um problema majoritariamente masculino, havendo também poucos investimentos e pesquisas na área de tratamento à mulher. “O que mais acontece hoje em dia são esses serviços mistos terem dias ou grupos especiais só de mulheres”, diz.
O Promud possui uma equipe composta por nutricionistas, enfermeiras, terapeutas ocupacionais, psiquiatras, advogada e assistentes sociais, e oferece tratamento ambulatorial realizado uma vez por semana. “Acreditamos que a internação é a nossa última opção e, para casos extremos, temos o serviço de internação do Hospital das Clínicas”, afirma o médico.
Contando com mulheres em faixas etárias que variam de 18 a 70 anos de idade, o tratamento é programado para ter a duração de três anos, o qual pode ser estendido ou realocado para lugares com prazos menores, dependendo do caso.
Ao ser perguntado sobre a taxa de desistência, Fábio identifica dois tipos de ocorrência. “Em geral, quem desiste acaba desistindo no primeiro mês – tem pessoas que vêm na primeira consulta, mas já faltam na segunda. Um outro corte é o de pessoas que ficam dos primeiros três a seis meses. Passando desse tempo, em geral elas costumam ficar no tratamento até o final.”
Para participar do Promud, primeiramente a paciente deve entrar em contato com o programa e agendar uma triagem, em que é identificado se o perfil é compatível ou não com o atendimento oferecido. Para aquelas que não residem em São Paulo e não possuem a disponibilidade semanal de ir até o HC, há um encaminhamento para serviços mais acessíveis e próximos de sua região.
Efeitos e diferenças fisiológicas
Droga é o nome dado a qualquer substância que, quando usada pelo indivíduo, altera suas funções. Ao ser ingerida, a droga ativa o sistema de recompensa do corpo humano – o mesmo ativado após a realização de exercícios físicos e a alimentação. Tal sistema é ativado pela dopamina, um neurotransmissor (substâncias químicas responsáveis pela comunicação do sistema nervoso) relacionado com a condição de dependência. Assim, o uso das drogas gera uma sensação de prazer que acaba viciando aquele que, muitas vezes, vê em tal sensação o único alívio e apoio emocional.
Estudos realizados no Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA mostraram que, além do sistema de recompensa, o impulso e a memória também estão associados ao vício. Isso porque descobriu-se que os efeitos das drogas no nosso corpo vão além dessa área do cérebro associada à dopamina, alcançando o córtex pré-frontal (localizado na “frente” do cérebro e responsável por, entre outras funções, a tomada de decisões e a memória de curto prazo).
Além da tomada de decisões, o córtex pré-frontal também é responsável pela expressão da personalidade e a modulação do comportamento social. Imagem: Reprodução/Internet.
Uma vez utilizada, a droga cai na corrente sanguínea, por onde viaja até chegar no sistema nervoso central, (composto pelo cérebro e a medula espinal). O psicoativo interfere na comunicação dos neurônios com as demais células do corpo, alterando as informações que chegam e que saem do cérebro, o que causa a disfunção do organismo.
No que tange às diferenças dos efeitos nos usuários homens e mulheres, como apontam dados do artigo “Movimentos do Corpo-vida de Mulheres Usuárias de Drogas” e do United Nations Office on Drugs and Crime, a probabilidade de uma mulher se tornar dependente química é mais alta do que a de um homem e elas possuem uma maior taxa de mortalidade ocasionada pela injeção de drogas. Soma-se a isso que o consumo de drogas pelo sexo feminino está relacionado com o aumento de risco de desenvolvimento de tipos de canceres ginecológicos, complicações nas gestações e alterações no ciclo menstrual. Drogas como o ectasy, citando caso análogo, tem seus efeitos mais fortes nas mulheres, segundo pesquisas realizadas pelo Centro de Estudos Psiquiátricos da Universidade de Melbourne.
Tomando-se como exemplo o efeito do álcool em ambos os sexos, o feminino é aquele que sofre mais com os efeitos das bebidas, já que a substância tem uma tendência a se concentrar mais em seu sangue. Isso se deve à maior proporção de gordura encontrada no corpo das mulheres, à menor concentração da enzima que metaboliza o álcool no estômago e ao menor volume de água no corpo, o que torna a metabolização do álcool mais lenta.
A diferença na quantidade de tecido adiposo nas mulheres, que é maior que no corpo masculino, também tem influência. Fábio Carezzato diz: “Como elas têm mais tecido adiposo que os homens e menor volume de água, a quantidade de álcool no sangue é maior. Elas ficam mais intoxicadas que os homens com doses menores que as necessárias para deixá-los igualmente intoxicados”.
Mulheres tendem a ficar mais viciadas, apesar de possuírem menor índice de uso dessas substâncias. Estudos como o artigo Sex Differences in Drug Abuse mostram que uma das possíveis explicações para isso são as diferenças encontradas nos cérebros dos dois sexos, como a influência dos hormônios femininos, a exemplo do estrogênio.
Representação molecular do hormônio estrogênio que é responsável pelo controle da ovulação e pelo desenvolvimento das características femininas. Imagem: Reprodução/Internet.
Mente e vício
A herança de uma visão mais conservadora sobre o vício pode ser entendida como resultado de estudos do início do século 21. Para a sua realização, cientistas colocavam ratos em jaulas individuais, as quais possuíam dois bebedouros: um com água potável, outro com água misturada a heroína ou cocaína. Com os resultados, contatou-se que, ao descobrirem os efeitos da solução alterada, os ratos ficavam obcecados e a passavam a consumi-la até morrerem.
Bruce Alexander, professor de psicologia da Simon Fraser University, questionou a experiência, já que os ratos eram postos para viver uma vida solitária, sem nada pra fazer além de beber água. Ao repetir o experimento, Alexander proporcionou um ambiente diferente para os animais. Nesse novo espaço, havia interação com outros roedores, além de bolas coloridas para brincar e túneis pra escorregar. Como resultado, houve uma redução no consumo do bebedouro com cocaína e nenhum caso de vício ou overdose.
Ilustração de Stuart McMillen em “Rat Park”, que conta a história do experimento. (Reprodução/Internet)
Durante a Guerra do Vietnã, testemunhou-se uma situação análoga. Pelo menos 20% dos mais de 500 mil soldados americanos usavam heroína nos intervalos entre batalhas, uma das drogas mais viciantes existentes. Com isso, a população americana preocupou-se com o possível número de adictos que retornariam da guerra.
O que aconteceu foi diferente: 95% dos soldados interromperam o consumo de drogas após retornarem para casa. Todos esses dados levaram Alexander a comprovar sua teoria de que o ambiente em que a pessoa se encontra é o fator mais importante na possibilidade de possuir um vício.
De acordo com estudos do Centro de Pesquisa Social de Álcool e Drogas da Universidade de Estocolmo, Suécia, o consumo de drogas é muito maior em áreas ocupadas por populações pobres, com condições impróprias de saúde, habitação e convívio social, em que as substâncias servem como refúgio para compensar a isolação, o trauma e a violência.