ISSN 2359-5191

05/10/2007 - Ano: 40 - Edição Nº: 54 - Saúde - Faculdade de Saúde Pública
“A falha não é do controlador, mas do sistema”, afirma pesquisadora

São Paulo (AUN - USP) - O acidente da Gol com o Legacy em outubro do ano passado trouxe à tona as fragilidades do tráfego aéreo brasileiro. A crença que estamos vivendo apenas uma crise passageira esconde, na verdade, uma conjuntura mais complexa. “A situação do país é um estado de instabilidade continuada no qual tem eclodido sucessivos episódios críticos”.

Essa constatação foi feita pela pesquisadora de saúde de trabalhador, Rita de Cássia Araújo, que estuda desde 1998 a saúde do controlador de vôo, um importante personagem do sistema de tráfego aéreo, que vem sendo alvo de descrédito e culpa.

O descuido, a negligência e a imprudência passaram a ser diretamentamente relacionados com a profissão.“A saída simplista de culpabilização do trabalhador é a marca de um sistema que não reconhece as deficiências de suas concepções, atribuindo a responsabilidade pelo acidente ao operador”, critica Rita, em sua dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) em 2000.

Ela explica que, desde o ano de sua pesquisa, o volume de tráfego aéreo no Brasil tem aumentado em média 12% ao ano, porém, não houve “melhorias das condições de trabalho, nem aumento do número de trabalhadores, e a sobrecarga foi ficando cada vez maior, sendo que em 2000, a situação já se encontrava no limite do limite.”

Apesar de o Brasil ser signatário de normas internacionais para a segurança do tráfego aéreo, como distância entre aeronaves e o número máximo delas que cada controlador deve acompanhar, o que vemos é um quadro bem diferente. “Aqui em São Paulo eles [controladores] monitoram de uma só vez 15 aeronaves enquanto o padrão internacional recomenda no máximo oito”, denuncia.

A competição entre as empresas aéreas gera estímulos para que o número de passageiros tenha mais do que duplicado, juntamente com um rápido crescimento do número de vôos, sem que a infra-estrutura tivesse acompanhado essa expansão.

Viúva de uma das vítimas do acidente com o avião Focker 100 da TAM em 1996, a pesquisadora obteve autorização do Ministro da Aeronáutica em 1998 para acompanhar e colher depoimentos dos operadores de tráfego aéreo no controle de Aproximação da área Terminal São Paulo (APT-SP) que abrange Congonhas, Guarulhos, Viracopos, Campo de Marte, Jundiaí, São José Campos, Sorocaba e Santos, uma área de aproximadamente 120 km ao redor da metrópole.

O comprometimento de sigilo das fontes, permitiu a reconstituição das conjunturas que estruturam toda a crise atual, a começar com a submissão a hierarquia militar.

Hierarquia militar
Em depoimentos colhidos pela pesquisadora, a submissão à estrutura militar e a própria militarização do setor apareceram como problematizadores do equilíbrio do sistema aéreo. Muitos trabalhadores, principalmente nos períodos mais movimentados, eram orientados por seus superiores a reduzir a separação entre as aeronaves das cinco milhas recomendadas pela Organização da Aviação Civil Internacional (ICAL, em inglês) para duas ou até mesmo 1,5, o que aumenta o risco de choque entre aeronaves. “O problema é que essas ordens não chegam por escrito, e quem paga pelos acidentes acaba sendo o controlador, como no caso de João Marcelo.”

João Marcelo Fernandes dos Santos era o controlador responsável pelo Legacy quando este chocou-se com o Boeing 737-800 da Gol em setembro do ano passado, matando 154 pessoas. Ele foi condenado por dolo, ou seja, quando o indivíduo age de má fé já sabendo das conseqüências que possam vir a ocorrer. “A falha não é do controlador, mas do sistema”, afirma Rita.

Como soldados
Sobrecarga de trabalho, dois empregos, problemas de saúde, pressões psicológicas, tensão constante, submissão a hierarquia militar, problemas com equipamentos e o pior, sem ter a quem relatar. “São essas as circunstâncias em que um controlador de tráfego aéreo vive hoje no Brasil”.

As jornadas são maiores que do que em vários países e os intervalos entre jornadas (15 minutos a cada duas horas) vêm sendo desrespeitados, para suprir o déficit numérico de controladores, assim como as folgas e férias. “O desgaste desse profissional nos períodos de mais tensão foi comparado, em um estudo, com o mesmo que soldados passam no campo de batalha, na linha do front.

” Ela afirma que apesar de a frota norte americana ser dez vezes maior que o Brasil - 5000 aeronaves contra 500, nos EUA as situações de acidente são aproximadamente vinte vezes menor que aqui, resultado de um amplo trabalho com prevenção.

“O Brasil está indo na contramão dos outros países quando não incentiva os participantes do sistema aéreo a reportar as situações de risco” “Pelo contrário, os pilotos via de regra, apontavam uma situação de conivência com situações, por que o risco de perda de emprego para os pilotos era muito grande”.

Ela conta que os operadores e os pilotos que acompanharam o Airbus da TAM durante o dia 24 de julho sabiam que a aeronave apresentara problemas com os manetes (alavancas que controlam a turbina do avião, ajudando na freagem) ao pousar em Congonhas durante a manhã vindos de Belo Horizonte. Mesmo com os relatos dos pilotos, a aeronave recebeu ordens de voar para Porto Alegre mais tarde. Na volta para São Paulo, os pilotos não conseguiram parar, atingindo o prédio da TAM Express, ao lado de Congonhas e matando 199 pessoas.

A problematização desse acidente é feito em seu artigo “Segurança Aérea no Brasil: uma questão de cidadania”, no qual expõe toda a conjuntura de Congonhas no momento: “diante da situação de risco iminente, considerando o mau tempo, a ausência das ranhuras; o declive da pista e o seu tamanho crítico; considerando, ainda, a inexistência de área de escape; somados ao conhecimento por parte da TAM, do problema que dificultava a desaceleração daquela aeronave, constata-se o seqüenciamento de uma ‘árvore de causas’ geradoras do acidente e a incapacidade de uma atuação preventiva por parte dos responsáveis. Bastaria interditar a pista principal ou desviar aquela aeronave ‘pinada’, para Cumbica. Infelizmente, os interesses econômicos têm prevalecido sobre todos os outros valores.

Formação
Há ainda que se considerar nesse cenário o aspecto da precarização da formação dos operadores. A pesquisadora conta que um trabalho que demanda tanta atenção e raciocínio como este precisa de uma boa formação profissional, de, pelo menos, três anos – dois teóricos e um prático supervisionado. “Hoje são abertos cursos de nove meses teóricos seguidos de sete práticos; que trabalhadores eles irão preparar?”, questiona Rita.

A questão do idioma é ainda pior. A falta de comunicação entre o Legacy e a torre de controle foi em grande parte pela insuficiência do inglês do controlador. Ela conta que antes de perderem a comunicação, o piloto do Legacy repetiu três vezes a altitude que se encontravam e os controladores não conseguiram entender. Como o avião estava próximo a Brasília, os pilotos entraram em contato com João Marcelo, um controlador novo, com formação rápida e reprovado anteriormente em quatro exames. “A dificuldade de encontrar pessoal é de tal ordem que eles estão colocando pessoas sem experiência para trabalhar em um Centro de Controle de Área (ACC)”, problematiza Rita.

Ela revela que há casos de controladores gagos, o que dificulta, e muito, a comunicação com os pilotos. Isso deve-se, em grande parte, pela colocação desse trabalho em segundo plano, já que os operadores se mantém no cargo até completarem uma outra formação acadêmica que dê outras possibilidades financeiras e reconhecimento profissional.

Uma questão de mobilização
Para a pesquisadora, a mudança da “óptica do lucro” só acontecerá mediante mobilização dos cidadãos, principalmente os que utilizam o tráfego aéreo, exigindo melhores condições de segurança. Ela explica que dentro de uma dimensão que diz respeito ao consumidor e a sociedade, essa situação de impunidade e de não esclarecimento das causas do acidente faz com que a insegurança se perpetue no Brasil.

“Pode soar cruel o que vou falar, mas para uma empresa que recebe $ 1,5 bilhão de dólares de seguro pelo casco de sua aeronave, produzir um acidente aéreo no Brasil é fonte de lucro. Ela paga todas suas despesas e ainda faz marketing dizendo em todos os veículos de comunicação que se solidariza com as famílias das vítimas e que estará a disposição para todas as necessidades”, aponta.

Como viúva de uma das vítimas do acidente de 1996, Rita conta que até hoje ainda aguarda uma condenação no Supremo Tribunal Federal. “Eu nunca tive um telefonema da TAM para saber se precisava de alguma coisa, assim como muitas outras famílias.”

Atualmente a pesquisadora Rita de Cássia, trabalha como assistente técnica da Covisa – Coordenação de Vigilância em Saúde do Município de São Paulo, na Sub Gerência de Saúde do Trabalhador, foi convidada, pelo Ministério Público do Trabalho a participar da ação que investigará as condições de saúde do controlador de tráfego aéreo na atual conjuntura, após a deflagração da fragilidade deste sistema, como era previsto neste estudo finalizado há seis anos.

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