São Paulo (AUN - USP) - Em maio de 2005, a dona-de-casa Sandra do Valle, de 54 anos, foi acometida por uma neurite ótica, uma inflamação no nervo ótico, que pode causar perda completa da visão. Nos dez dias que passou no hospital, passou por uma bateria de exames neurológicos, que nada atestavam, até que descobriu que era uma dos cerca de dois milhões de portadores do HTLV no Brasil.
O número, do Ministério da Saúde, é pouco preciso e revela o baixo grau de informação acerca do vírus. O HTLV é pouco conhecido até mesmo na comunidade médica: “Acredita que a minha dentista disse-me que nunca ouviu falar nisso? A minha cardiologista perguntou-me por duas vezes o nome do vírus e depois anotou em um papel, provavelmente para pesquisar”, relata Sandra.
O projeto de mestrado de Fabiana Martins, do Centro de Atendimento de Pacientes Especiais (Cape), da Faculdade de Odontologia (FO) da USP está contribuindo para aumentar as informações que se têm acerca do vírus. Através do exame clínico e da anamnese dos pacientes com HTLV do Instituto Emílio Ribas, Fabiana busca alterações bucais nos portadores: “Quero catalogar esses casos e publicar no meio científico, pois não há pesquisas nessa área”, ela afirma.
O vírus
O HTLV é um retrovírus que atinge os linfócitos T humanos. A transmissão se dá através do contato sexual desprotegido, do compartilhamento de seringas por parte de usuários de drogas injetáveis, e de forma vertical, ou seja, da mãe para filho. Apesar da semelhança entre as siglas e as formas de transmissão, o vírus é bastante diferente do HIV, a começar pela desinformação que o cerca.
O que se sabe é que existem duas variedades: o HTLV-1 e o HTLV-II. O primeiro é mais conhecido e é comprovadamente relacionado ao aparecimento de linfoma/leucemia das células T, além de uma doença neurológica degenerativa chamada de paraparesia espástica tropical, que causa perda progressiva do movimento dos membros inferiores. Além destas enfermidades, há indícios de que o vírus esteja relacionado ao aparecimento de infecções como a neurite, que acometeu Sandra, a uveíte e alterações dermatológicas, entre outras.
O segundo tipo é ainda mais desconhecido. Não há provas de nenhuma doença ligada a ele e alguns médicos chegam a afirmar que ele não causa nenhum mal. No entanto, Jorge Casseb, imunologista do Instituto Emílio Ribas, adverte: “Ainda é muito cedo pra afirmar que o HTLV-II não está ligado a nenhuma doença. Há poucas pesquisas na área e nenhum resultado conclusivo”.
Na maioria dos casos, o HTLV é assintomático e estima-se que apenas 5% dos portadores apresentam alguma doença ligada a ele. Não há cura para o vírus, mas as infecções deles resultantes têm tratamento.
HTLV e odontologia
Fabiana começou a pesquisar as alterações bucais em pacientes portadores do HTLV em 2005, no Instituto Emílio Ribas, em São Paulo. O estudo pioneiro, agora em fase final, encontrou, de fato, evidências de problemas odontológicos relacionados ao vírus.
Na literatura, já havia a relação entre a incidência de linfomas bucais e o HTLV-1. No entanto, a pesquisa da odontologista da FO-USP aponta a sensação de boca seca como uma das reclamações mais recorrentes nos portadores do vírus. Tal sensação é chamada de Síndrome Sicca, um dos sintomas da Síndrome de Jögren, uma doença auto-imune caracterizada pelo ressecamento da mucosa dos olhos e da boca, mas não necessariamente ligada a ela. O Jögren pode, muitas vezes, estar ligada ao aparecimento do linfoma.
“O linfoma é um tipo de câncer muito agressivo e o paciente tem, em geral, cerca de dois anos de sobrevida. Por isso, é importante realizar pesquisas nessa área, para entender melhor a ligação entre a doença e o vírus e poder desenvolver tratamentos mais eficazes, além de campanhas de prevenção”, afirma Fabiana.
É importante lembrar que a pesquisa ainda não foi concluída, de forma que os resultados obtidos ainda são preliminares.
Descaso?
No Brasil, não há pesquisas epidemiológicas consistentes que permitam um melhor monitoramento dos portadores do HTLV. “Na verdade, não existe nenhum estudo pelo governo nacional. Os dados são de bancos de sangue”, explica Casseb. O exame para verificar a presença do vírus é obrigatório para os potenciais doadores de sangue desde 1993.
Baseado nos casos catalogados por estas instituições, estima-se que o País tenha o maior número absoluto de portadores do mundo: 2,5 milhões. Um estudo realizado em 2000 analisou os casos do vírus observados nos bancos de sangue dos 26 estados do País, mais o Distrito Federal. A pesquisa identificou que a ocorrência de contaminação é maior nas regiões Norte e Nordeste e menor no Sul, o que indica uma relação entre a renda da população – menor nas regiões com maior incidência – e a prevalência do HTLV.
A realização de exames de confirmação não é obrigatória de acordo com o Ministério da Saúde, como ocorre no caso da Aids. Se o exame realizado no potencial doador de sangue acusa que o paciente é HTLV positivo, o banco não é obrigado a realizar o exame confirmatório, o que aumenta as chances de falso positivo, comprometendo os dados. Ao paciente é recomendado que procure um médico ou o serviço público de saúde.
Além disso, as doenças relacionadas ao vírus não precisam ser reportadas ao Ministério, como acontece com o HIV – se uma pessoa apresenta sintoma de Aids, a unidade de saúde comunica o caso ao governo, para que se tenha uma base estatística consistente para realização de campanhas de prevenção e estabelecimento de tratamentos eficazes. A não-realização deste procedimento para o HTLV resulta em falta de recomendações aos profissionais da área, que não contam com uma política de saúde pública bem delineada para o tratamento das doenças relacionadas a ele.
Os portadores de HTLV do Fiocruz, no Rio de Janeiro, onde Sandra realiza o tratamento, reivindicam uma providência nesse sentido: pleiteiam que a realização do teste para o vírus torne-se obrigatória no exame pré-natal. “Estamos esperando que algum deputado se interesse pela nossa causa”, afirma Sandra.
Ela acrescenta: “Assim como eu, acredito que existam muitas pessoas portadoras do vírus que atribuem as infecções causadas por ele a outros motivos. Isso acontece até mesmo com os médicos. É preciso aumentar o grau de informação”.