São Paulo (AUN - USP) - “Em 19 meses, a construção de mais de 35 mil metros quadrados. Esse foi um tremendo de um desafio. E hoje eu ainda me pergunto ‘Puxa, como eu consegui fazer isso?’” A dúvida é de Antonio Massola, engenheiro, ex-coordenador da Coordenadoria de Espaços Físicos da USP (Coesf) e um dos principais responsáveis pela realização do empreendimento que resultou no que hoje é a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH).
A fala abre o documentário Capacetes Coloridos, de Paula Constante, que busca respostas a essa pergunta. O vídeo foi feito como Trabalho Final de Graduação (TFG), orientado por Silvio Dworecki. Foi apresentado no 2º semestre de 2007, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU). Seu título faz referência aos capacetes de diferentes cores usados pelos trabalhadores de um canteiro de obras, que explicitam a hierarquia existente – “o branco é sempre da chefia”, explica uma fala logo na abertura do vídeo.
“O canteiro é hierarquia clara e absoluta. O cliente solicita. Os técnicos pensam, solucionam, calculam. Um engenheiro e um mestre de obras organizam a labuta diária. E aí vêm as centenas de operários organizados também hierarquicamente em encarregados, especialistas, sub-especialistas e ajudantes”, diz Paula no texto do encarte que acompanha o documentário.
Falou ainda, em entrevista, da alienação do trabalho. “Quanto menor a sua classificação na hierarquia do canteiro, maior o grau de desconhecimento em relação a tudo: processos, formação profissional etc. A pessoa não passa de um instrumento de carga. Para que todo esse sistema funcione se faz necessária a ignorância, o rebaixamento do saber e do pensar em contraste àqueles que comandam e ‘sabem o que estão fazendo’”, afirma.
As obras da USP Leste seguiram esta lógica dos canteiros tradicionais. Paula, que trabalhou no canteiro como estagiária do departamento de fiscalização de obras do Coesf, conta que o documentário surgiu em grande parte de suas próprias inquietações. Era uma mulher em um meio tipicamente masculino, e uma estudante pouco experiente, que, no entanto, por sua posição, circulava na obra com um capacete branco.
“Com aquele capacete não havia cabelos compridos, saias, falta de conhecimento, experiência, idade ou estatura: me fazia gigante. Por onde eu passasse com minha máquina fotográfica e minha pranchetinha de anotações, os operários baixavam a cabeça. Alguns me diziam ‘bom dia’. Outros sequer ousavam. Já aquilo pra mim era de uma violência imensurável”, conta Paula no encarte.
Na entrevista, apontou ainda outra forma de violência dos canteiros de obra: “a violência física do trabalho propriamente dito”. “O canteiro da USP Leste é incomum no cenário brasileiro: é um canteiro 'rico', no sentido de que houve recursos para inovações, para uma obra rápida, para uma nova tecnologia. Os operários podiam contar com equipamentos que os poupavam de tanto esforço físico. Mas essa premissa de projeto – a adoção dessas técnicas construtivas – foi tomada apenas porque a obra deveria ser rápida. Ponto final”, afirma Paula.
No início do documentário, o arquiteto e artista plástico Sérgio Ferro, cujas idéias tiveram forte influência sobre a documentarista, provoca: “Só é possível fazer um canteiro realmente diferente em duas condições: uma, em condições experimentais, que a universidade deveria fazer. Teria a obrigação de fazer. Testar, com operários iguais, outras relações de produção”.
E porque a universidade pública não o faz? “Por uma questão muito simples: a universidade cria algumas parcerias com a iniciativa privada quando não se vê "capaz" de realizar algum tipo de serviço (em "capaz" lê-se: capaz dentro dos imediatismos e lógicas dominantes). Algo bastante comum em qualquer serviço de construção civil. Na implantação da USP Leste isso aconteceu através da licitação. Ao chamar empresas para prestação de serviços para o poder público, cria-se um pacto com a lógica do mercado”, afirma Paula.
E acrescenta: “Se ela [a USP] se propusesse a fazer um canteiro desse porte de uma maneira experimental, seria necessário um pouco mais de tempo e muita (mas muita) vontade política. A meu ver, essa é a função da universidade”.
Como contraponto à lógica e às relações de trabalho tradicionais no canteiro da USP Leste, Paula apresenta um mutirão autogerido, cujo canteiro de obra situa-se também na Zona Leste, na Cidade Tiradentes. O mutirão, da Associação Paulo Freire, recebe apoio da Usina, grupo multidisciplinar de assessoria técnica a movimentos populares e a administrações públicas.
O contraste é evidente. “O dia de Trabalho é leve. O trabalho não. As mulheres são maioria. Passa-se o dia conversando, proseando. (...) Os trabalhadores aqui parecem mais livres. Não há cobrança senão a de si próprio. Aquele edifico é deles mesmos. São eles mesmos os clientes”, descreve Paula.
“A idéia do mutirão é provocar um sentimento de coletividade. Um sentimento de agrupamento e de decisões que partem do todo e não dos mais altos escalões. Fazer com que as pessoas nele envolvidas possam se apropriar de todo o processo. Saibam o que estão fazendo ali e comecem a ter voz”, afirma.
“Reproduzir o modelo do mutirão em grandes obras, que estão diretamente ligadas ao interesse do capital, parece absurdo. E aí você me pergunta: mas a Universidade está diretamente ligada ao interesse do capital? No caso específico da USP Leste está. A partir do momento que empresas são licitadas para um serviço, há uma intenção de lucro. Quanto mais tempo a obra demora, mais caro fica para a empreiteira. A entrega da USP Leste também estava diretamente ligada a interesses e prazos políticos. São dois fatores que jamais permitiriam utilizar a lógica do mutirão em questão para toda a obra”.
“Pensar a universidade com relações mais horizontais e menos violentas é pensar a universidade desligada da lógica de mercado imposta do 'lado de fora' dela. É pensar na proposta de um sistema fora da lógica do capital, na qual estamos inseridos. Toda a contradição, toda a alienação, toda essa violência hierárquica vem daí”.