São Paulo (AUN - USP) - Telê Porto Ancona Lopez, estudiosa do modernismo e da obra de Mário de Andrade, defendeu valorização da marginália na Literatura na palestra “Livros Raros: leituras de Mário de Andrade”, proferida recentemente no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). A palestra, com o intuito de relacionar a marginália à produção literária de Mário de Andrade, foi a segunda de um ciclo que visa complementar a exposição atual do instituto, “Obras Raras em Acervos Públicos”.
Segundo Telê, cada livro é único, possui uma série de traços particulares adquiridos ao longo do tempo. Desse modo, vão se formando invisíveis camadas. Essas camadas podem-lhe conferir raridade quando, por exemplo, há uma dedicatória, um autógrafo, uma censura. O mesmo ocorre quando o leitor-escritor carrega o livro de notas de leitura, de observações: aquele exemplar se torna único.
É nisso que consiste a literatura marginália. Segundo Telê em artigo publicado em 2007, intitulado “A criação literária na biblioteca do escritor”, “o termo marginália, emprestado do latim, designa o conjunto das notas que os leitores introduzem nas margens e entrelinhas das páginas, no verso das capas ou nas folhas de guarda dos livros ou em periódicos sobre os quais se inclinam, anotações as quais, muitas vezes, se prolongam em folhas manuscritas, recortes de jornais ou revistas, postos no interior dos volumes”.
O livro que pertence à marginália ganha novo status, passa a equivaler a um manuscrito. Logo, aquele exemplar, visto como um documento, serve de instrumento de pesquisa histórica e literária. Foi assim com Mário de Andrade, que, com uma herança de 17 mil títulos de sua biblioteca, construída desde a juventude, deixou não só muitos livros autografados e com dedicatória como muitos livros carregados de notas de leitura.
Com as anotações, pode-se acompanhar o desenvolvimento das leituras de Mário de Andrade. Além disso, constituem um “mapa” da produção literária do autor. Suas anotações vão mostrar um Mário modernista, preocupado em traduzir a identidade nacional e em conhecer o povo brasileiro. Esses livros transformados em manuscritos, entretanto, não são quaisquer leituras. São, na verdade, subsídios que vão fundamentar as obras do escritor modernista, como “Paulicéia Desvairada” e “Macunaíma”.
Para produzir “Macunaíma”, por exemplo, Mário lerá muitos livros de etnologia, como “Vom Roroima Zum Orinoco” (De Roraima ao Orinoco), de Theodor Koch Grünberg. Ao lado das informações que serão posteriormente usadas na obra, marcará “mac” ou “macu” nas laterais. Também encontrará nas gravuras de Debret subsídios para sua obra-prima.
Outro livro que pertence à marginália estudado da biblioteca do escritor é uma edição de poemas de Castro Alves, poeta romântico pertencente à fase condoreira. Em uma edição de 1921, Mário destaca de um dos poemas a palavra “p’ra” (para). Isso ilustra a preocupação dele com a questão da língua “brasileira”, claramente presente em seu projeto modernista.
Já para escrever “Paulicéia Desvairada”, o livro de cabeceira de Mário foi “Les villes tentaculaires precedées de Les campagnes hallucinées”, de Émile Verhaeren. Da obra do escritor belga ele tirará a visão impressionista de que na loucura as verdades se intensificam. Também do título do livro, tirará as idéias de “loucura” (de hallucinées) e “cidade” (villes), que se converterão em “desvairada” e “paulicéia”.
No livro de Verhaeren não há anotações, mas há reverberação posterior. No caso, em carta ao amigo Manuel Bandeira, em 16 de agosto de 1931, Mário fala de “Paulicéia”: “Eu passara esse ano de 1920 sem fazer poesia mais.[...] mas só então descobrira Verhaeren. E fora o deslumbramento. Levado em principal pelas Villes tentaculaires, concebi imediatamente fazer um livro de poesias ‘modernas’, em verso-livre, sobre a minha cidade. Tentei, não veio nada que me interessasse. Tentei mais, e nada. Os meses passavam numa angústia, numa insuficiência feroz. Será que a poesia tinha se acabado em mim?…”
“Fiquei alucinado, palavra de dentro, num estado inimaginável de estraçalho. [...] Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. [...] Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, Paulicéia desvairada. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias interrogativas.” [...]
Para Telê, é por essa riqueza documental e literária que a marginália deve ser valorizada. As bibliotecas devem ficar atentas quando surgem grandes coleções, pois podem não ser livros quaisquer. Estes podem conter anotações, transformando aquelas obras em documentos raros, além de dar suporte para uma pesquisa. A literatura marginália, diferente do que o nome sugere, não está à margem. Pelo contrário, é uma literatura rica, que liga o conhecimento do livro ao leitor, futuro produtor de conhecimento.