São Paulo (AUN - USP) -A tolerância a alta desigualdade de renda no Brasil se reflete na baixa eficácia distributiva das políticas tributária, previdenciária e assistencial. Essa é a conclusão de um estudo feito por Fernando Gaiger Silveira, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), apresentado recentemente em um seminário na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP.
Em seu trabalho, Gaiger avaliou os impactos distributivos da tributação direta e indireta e da previdência e assistência sociais na renda do brasileiro. Para isso, foram utilizados os dados da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) de 2002-2003 realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A POF é uma pesquisa domiciliar por amostragem que busca mensurar, a partir de amostras representativas de uma determinada população, sua estrutura de gastos (despesas), seus recebimentos (receitas) e suas poupanças.
Segundo o pesquisador, a escolha recaiu sobre esse período pelo fato de apresentar uma captação mais aprofundada dos rendimentos, coletando informações discriminadas das aposentadorias e pensões, dos auxílios previdenciários e assistenciais – sejam públicos, sejam privados, dos diversos programas de transferência de renda e de apoio ao trabalhador.
Gaiger fez a avaliação dos impactos distributivos dos diferentes tipos de transferências e de impostos sobre a renda das famílias por meio dos indicadores usuais de concentração da renda, calculando-os para as rendas anteriores e posteriores à concessão dos benefícios e à incidência dos tributos. Os impactos, ou seja, a mudança nos índices de concentração, resultam de dois componentes: um relativo ao grau de progressividade ou regressividade do benefício ou tributo e o outro ligados aos rearranjos que tais intervenções provocam no ordenamento das famílias pela renda.
“Emprega-se um esquema de estágios de renda, com a primeira, denominada renda original, constituindo-se dos rendimentos de caráter privado. Ou seja, todos aqueles rendimentos auferidos pelos membros das famílias antes da adição dos benefícios ou da dedução dos impostos. Em um segundo momento adicionam-se à renda original os benefícios monetários concedidos pelo Estado, sejam de caráter previdenciários, sejam assistenciais, obtendo-se a chamada renda inicial. Deduzindo-se desta os impostos sobre a renda, as contribuições previdenciárias e os impostos sobre patrimônio – imóveis e veículos – chega-se à renda final. Subtraindo-se os impostos indiretos resulta a renda disponível ou a renda após a tributação”, explica o pesquisador em seu paper.
Ele afirma que os impostos são uma das maneiras mais eficientes de distribuição de renda. “Devido a diferença de salários entre os mais ricos e os mais pobres, a tributação é o principal instrumento que os governantes podem usar para dividir as riquezas produzidas no país. As pessoas costumam ser contra pagar impostos, mas não vêem que isso ajuda a construir uma sociedade mais justa e civilizada”, diz.
Apesar da carga tributária brasileira ser comparável a de países ricos e ter um importante papel distributivo, a desigualdade e a concentração de renda ainda são altas no Brasil. Em recente boletim do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, Márcio Pochmann, presidente do IPEA, escreveu que desde a década de 1950 cai a participação do salário na renda: “Atualmente, menos de 40% da renda nacional são apropriados pelos trabalhadores; no final da década de 1950, aproximava-se de 60%. Em contrapartida, os detentores de patrimônio assistem à expansão contínua de seus rendimentos”.
Gaiger explica que para a mudança deste paradigma é necessário que se cobrem alíquotas maiores nos impostos diretos, como o Imposto de Renda (IR), na medida em que nessa modalidade de imposto aqueles que possuem receitas maiores, pagam mais. Portanto, são progressivos. Isso quer dizer que impostos, taxas e contribuições incidem regressivamente sobre a população brasileira. Em decorrência da concentração de renda, há segmentos sociais que acabam não sentindo o peso das tributações.
“A progressividade da tributação direta no Brasil mostra-se similar à dos países centrais. Observa-se, contudo, uma participação muito inferior na renda pessoal. Com isso, o impacto distributivo perde eficácia. Preocupante é a regressividade do IPTU, tributo sobre o patrimônio que deveria ser, assim como o IR, progressivo. Isso indica quão frágil é a solidariedade fiscal na sociedade brasileira, pois os tributos diretos têm uma participação muito menor no orçamento fiscal brasileiro, em vista do que se observa nos países centrais”, salienta Gaiger.
Ele também destaca que o sistema de Previdência Social perde seu papel distributivo, pois a população mais rica contribui mais e, como resultado, usufrui mais do serviço. “A desigualdade da renda, considerando-se somente os rendimentos de origem privada, entre os quais se destacam os rendimentos do trabalho, é extremamente elevada no país. Dado que nosso sistema de previdência social se caracteriza, em grande medida, por ser um seguro social, ou seja, aposentadorias e pensões têm estreita relação com as contribuições pretéritas, o perfil distributivo das aposentadorias e pensões reflete as desigualdades do mercado de trabalho”.
Uma outra conclusão do estudo do pesquisador diz respeito ao peso que os tributos indiretos, como o ICMS, que recaem sobre o consumo, têm na renda pessoal e no orçamento governamental. Gaiger afirma que, na Inglaterra, por exemplo, o efeito líquido da tributação é neutro, cabendo às políticas sociais o papel redistributivo. No Brasil, diz, além dos ganhos distributivos das políticas sociais serem bem mais modestos, esses são neutralizados pelo resultado regressivo da tributação, pois seu peso é maior na renda dos mais pobres.
“Somos tolerantes a alta desigualdade na renda, o que se reflete na baixa eficácia distributiva das políticas tributária, previdenciária e assistencial. É nessas intervenções governamentais que se refletem os consensos sociais na luta pela eqüidade e igualdade, tendo se observado nos últimos anos uma queda expressiva da desigualdade aproveitando os efeitos distributivos dos programas de transferência de renda e do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), por meio da valorização do salário mínimo. É alvissareiro, por outro lado, o crescimento maior que a tributação direta vem tendo na participação da carga, o que se reflete no aumento de importância no orçamento das famílias dos impostos diretos entre as duas últimas POFs”, conclui.
Tributação brasileira
A importância do tema tratado por Fernando Gaiger em seu estudo pode ser medida em artigo publicado no dia 14 de setembro no jornal “Folha de S. Paulo”, em que Márcio Pochmann trata dos mitos existentes em torno da tributação brasileira. Nele, o presidente do IPEA destaca que “os mais pobres estão condenados a compartilhar suas reduzidas rendas com o financiamento do Estado brasileiro, porque a tributação brasileira é pesadamente indireta, ou seja, arrecada a maior parte em impostos sobre produtos e serviços – portanto, pesa mais para quem ganha menos”.
Ele também salientou que há uma tributação direta, sobre rendas e bens, muito “tímida” em termos de progressividade. “O Imposto de Renda, que nos EUA, tem cinco faixas e alíquotas de até 40% e, na França, 12 faixas com até 57%, no Brasil tem apenas duas, com alíquota máxima de 27,5%. Aqui, impostos sobre patrimônio, como IPTU, nem progressividade têm”.
Nesse sentido, as habitações dos mais pobres pagam, proporcionalmente à renda “mais tributos do que aqueles que residem em mansões, enquanto os grandes proprietários de terra convivem com impostos reduzidos e decrescentes”, escreveu.