São Paulo (AUN - USP) -Do final do Império às primeiras décadas da República, o Brasil vivenciou um debate fundamental para a formação do pensamento desenvolvimentista: a controvérsia entre metalistas e papelistas. Essa é a conclusão de um estudo apresentado recentemente pelo professor Pedro Cezar Dutra Fonseca em seminário realizado na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA). Doutor em Economia pela USP, Fonseca é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em história econômica brasileira.
Em busca da gênese do desenvolvimentismo – ideologia de transformação da sociedade assentada em um projeto econômico voltado à industrialização como via de superação da pobreza e do subdesenvolvimento, sob o entendimento de que esta não adviria pela espontaneidade das forças de mercado, ou seja, seria indispensável a atuação do Estado como indutor, agente planejador do desenvolvimento e/ou investidor direto – ele recuou no tempo e resgatou a importância do papelismo nesse processo.
De acordo com o pesquisador, no centro da discussão entre papelistas e metalistas estava a conversibilidade da moeda, algo essencial em uma economia agroexportadora como a brasileira. “Afinados com a ortodoxia, os metalistas defendiam o padrão ouro e a prioridade à estabilidade monetária. Por outro lado, os papelistas eram adeptos da heterodoxia e defendiam a prioridade do investimento sobre a poupança, a taxa de juros sobre a taxa de câmbio e o crescimento sobre a estabilidade”, explica.
Enquanto o metalismo encontrava respaldo na teoria econômica convencional em sua defesa ferrenha do padrão ouro, o papelismo não contava com o mesmo arcabouço teórico, diz Fonseca. Segundo ele, para defender o desapego ao que consideravam amarras às políticas monetária e cambial, os papelistas recorriam à razão prática, ou seja, à experiência.
“A preocupação dos papelistas era com o nível de atividade econômica. Sua pergunta mais freqüente, qual o nível de oferta monetária mais condizente com o ânimo dos negócios, consistia verdadeira heresia para os metalistas, cuja prioridade econômica era a estabilidade e a política cambial. Defensores do padrão ouro, eles estabeleciam a relação entre política monetária e balanço de pagamentos: metais preciosos ingressariam naturalmente no país se a economia fosse saudável e qualquer oferta de moeda sem lastro causaria inflação. A taxa de juros era entendida como fenômeno real, dependente da taxa de lucro”, salienta o especialista da UFRGS.
Em contrapartida, os papelistas defendiam que a oferta de moeda deveria ser flexível ou elástica a ponto de não interferir negativamente nas atividades produtivas. Nesse sentido, acreditavam que o governo deveria simplesmente ajudar e não prejudicar a economia.
Ao dizer que a atenção maior da política econômica deveria estar na taxa de juros e não na taxa de câmbio, embora ainda não houvesse no papelismo um corpo teórico sólido que embasasse suas teses, “não há dúvida de que as mesmas eram instigantes e se aproximavam, em alguns aspectos, do futuro keynesianismo, além de não possuírem um grau de sofisticação menor que as dos metalistas. A taxa de juros refletia o estado de ânimo da economia e era um fenômeno estritamente monetário, determinada por oferta e demanda de moeda”, destaca Fonseca.
O professor diz que não existiam tipos ideais de papelistas e metalistas, mas, na verdade, pessoas que transitavam de um pensamento para o outro. Alguns, por exemplo, afirmavam que a regra deveria ser o padrão ouro, no entanto, quando houvesse uma crise muito grande na lavoura, o governo teria que permitir a liberdade dos bancos em emitir moeda para reduzir os efeitos dessa quebra. Assim, havia quem admitisse que, em casos excepcionais, o padrão ouro poderia ser afrouxado.
Barão de Mauá era adepto desse pensamento. Ele dizia que o padrão ouro era uma regra extremamente salutar, mas que o Brasil não estava preparado para adotá-lo por ser um país agrário, por ter ciclos econômicos dependentes da agricultura e do clima e por possuir muitas disparidades regionais. Tais disparidades, afirma Fonseca, eram um dos principais argumentos usados pelos papelistas para que os bancos tivessem o poder de emitir papel moeda.
Debate acadêmico
Em seu trabalho, o estudioso da UFRGS mostra que quatro correntes podem ser apontadas como fontes precursoras do desenvolvimentismo e que desde o século XIX elas vinham se desenvolvendo separadamente com trajetória própria, contudo, acabaram se mesclando e no longo prazo confluíram para formar um conjunto de idéias e de propostas de política econômica que se poderia denominar desenvolvimentistas, a saber: os defensores da industrialização; os positivistas; os nacionalistas e os papelistas. Segundo ele, a “consolidação” em um ideário comum no Brasil ocorreu ao final da década de 1920 e materializou-se como política econômica efetiva de um governo pela primeira vez, de forma mais acabada, no Rio Grande do Sul, com a ascensão de Getúlio Vargas à presidência desse estado em 1928.
Fonseca diz que o papelismo desempenhou uma função muito importante, pois introduziu no meio acadêmico um ideário que até então inexistia. “Na época, as discussões se davam entre liberais e positivistas, mas ambos concordavam que o equilíbrio orçamentário deveria ser a regra das finanças do país. Os papelistas trazem algo novo ao debate: diziam que a regra do padrão ouro engessa a economia, que a oferta de moeda não poderia ser decorrência do balanço de pagamentos e que a taxa de juros não era para fazer a estabilidade econômica, para baixar a inflação, como acreditavam os metalistas, mas para incrementar a produção e o ritmo dos negócios”, conta.
Essas idéias começaram a ganhar adeptos na faculdade de Direito do Largo São Francisco e surgiram pessoas que afirmavam que a preocupação do governo deveria ser com a produção, algo fundamental para o desenvolvimentismo.
O professor explica, no entanto, que, no Brasil, o debate dos papelistas tinha como referência uma economia agroexportadora, o que mostra que eles não eram industrializantes. “O papelismo casa com a defesa da lavoura e isso é consensual, só que traz uma idéia que é fundamental para o desenvolvimentismo: assumia pela primeira vez a prioridade da produção na condução da política econômica pelo governo”.
Dessa forma, os papelistas da época desempenharam papel relevante, mas não podem ser vistos como desenvolvimentistas. O pesquisador diz que o desenvolvimentismo tem em sua base três fatores essenciais: defesa da industrialização, defesa do intervencionismo estatal pró-crescimento e o nacionalismo, sendo este não só uma utopia ou algo do tipo, mas um apelo à identidade nacional, coisas que não existiam no papelismo.