São Paulo (AUN - USP) - Como ato político e forma de protesto, certos ramos da arte contemporânea têm o poder de unir o belo ao indecoroso, o aceitável ao proibido. O tema foi debatido no Colóquio Belas Abjeções, organizado pelo Museu de Arte Contemporânea da USP em parceria com o Instituto Cervantes. Profissionais das artes visuais, psicanálise, estética, literatura e filosofia apresentaram e discutiram obras de artistas representantes do movimento como Hilda Hilst, Jean Genet, Marc Quinn, entre outros.
“[Na arte contemporânea] temas obscenos se associam às manifestações superiores”, definiu Eliane Robert de Moraes, palestrante do evento e professora da PUC-SP. Segundo ela, as obras contemporâneas nivelam o discurso erudito e o obsceno, principalmente nos escritos de Hilda Hilst. A particularidade desta autora, contudo, não está apenas em abordar o incômodo, pois isso já era feito há muito tempo, disse Eliane. O objetivo principal é unir o abjeto a uma linguagem elevada. Assim, Hilst incomodou tanto os admiradores da arte erudita quanto os pornográficos, por fazer uma anarquia de gêneros literários.
Para Luciana Godoy, que apresentou um trabalho sobre as fotografias do americano Mappelthorpe, essa anarquia tem o propósito explícito de inscrever a arte em um cenário mais crítico. Mappelthorpe, acredita, fotografa corpos de incrível beleza estética em posições pornográficas com o propósito de atrair o espectador, e quiçá fazê-lo aceitar e buscar o obsceno. “A beleza contagia o tema, fazendo com que o conteúdo também seja buscado”, disse. Nesse sentido, o protesto reside em propor a aceitação de novas formas de sexualidade.
A arte contemporânea, porém, não visa somente a negação de valores, mas também a construção de um lirismo. Foi o que defendeu Camila Salles Gonçalves, doutora em Filosofia pela USP, ao falar da obra de Jean Genet. O francês abordava temas da marginalidade com profundo lirismo poético. Além de derrubar valores, “o sujo e o vulgar ornam a criação de lirismo e atestam um poder individual: ‘Veja como manejo minha estética a meu bel-prazer’”, exemplificou a palestrante. Mappelthorpe, segundo Luciana Godoy, também empregava em suas fotografias técnicas de composição sofisticadas como a luz granulada, a sutileza das sombras e a simetria, que estetizam o abjeto em algo bonito.
Ainda foram discutidas obras cuja matéria-prima é o próprio corpo do artista, ou de outros, sejam animais ou modelos. O britânico Marc Quinn, durante cinco meses, extraiu e congelou o próprio sangue para compor uma escultura da própria cabeça, exemplificou a psicanalista Marion Minerbo. Já a francesa Orlan interfere diretamente em seu corpo, o que denomina “arte carnal”. Um de seus trabalhos consiste em um vídeo no qual ela se submete à implantação de placas de silicone em seu rosto. O uso de substâncias orgânicas na composição de uma obra é considerado abjeto por expor ao público o que pertenceria à intimidade, como fluidos internos do corpo, as “entranhas estranhas”, termo de Minerbo.
Esse tipo de obra, conforme Minerbo, reflete uma crise na arte tradicional. Como as formas comuns de fazer arte parecem representar, comunicar, transformar pouco, os artistas apelam às chocantes intervenções em si mesmos, ao contraste entre aceitável e ignorado, belo e feio. “As belas abjeções representam uma crise na representação da arte”, concluiu ela.