São Paulo (AUN - USP) - Ferramenta cada vez mais utilizada, tanto no campo judiciário quanto no escolar, o laudo psicológico pode ter sua qualidade comprometida pela falta de formação dos profissionais que o redigem. O laudo psicológico é uma espécie de relatório feito por um psicólogo, que servirá como base para tomada de uma decisão. Isso inclui desde disputas legais de guarda dos filhos até a colocação de alunos em classes especiais. Daí a importância de que esse documento seja bem redigido, por um profissional capacitado a fazê-lo.
Autor de uma tese sobre as condições que tornam um laudo aceitável do ponto de vista jurídico, Sidney Kioshi Filho alerta para a falta de preparo de psicólogos para a elaboração desses relatórios. “A ênfase na formação do psicólogo está na análise dos dados coletados sobre determinada situação. Já como agrupá-los e escrevê-los de forma compreensível a um destinatário leigo não recebe a devida atenção”. Sidney, que analisou 31 casos de laudos suspeitos de conter falha ética, observou a existência de diversos problemas. O primeiro deles é a variedade de formas que um psicólogo pode ser inserido numa questão jurídica. Cada maneira exige um posicionamento diferente do profissional. Existem, por exemplo, os psicólogos jurídicos, convocados pelo juiz para realização de uma perícia do caso. Em outras situações o psicólogo pode ser chamado como testemunha. Nesse caso, é dele requerido um depoimento, não um laudo. Contudo alguns profissionais fantasiam seu depoimento de laudo e, em alguns casos, o juiz o aceita como tal. Sidney questiona: “Quando se fala de laudos, muitas vezes aceita-se qualquer coisa. Será que nós, psicólogos, deveríamos aceitar qualquer coisa?”
Segundo ele, também é possível, especialmente em disputas de guarda, que uma das partes contrate um psicólogo próprio. Ele emitiria um laudo para subsidiar o pedido de seu cliente na justiça. Na maioria das vezes, o psicólogo contratado para isso tem experiência clínica, mas não jurídica. O resultado é a falta de preparo para lidar com o ambiente de conflito do tribunal. Seja por inocência do profissional, seja por má-fé, o que fica comprometido, nesses casos, é a imparcialidade do relatório. “Se pegarmos o exemplo do psicólogo particular contratado para fazer uma avaliação e dar um laudo contra o outro pai, não haveria a possibilidade de imparcialidade. Principalmente, se este profissional não chamou e nem conversou com o outro genitor”, explica Sidney. Para ele o laudo imparcial necessita ouvir ambas as partes.
A questão da imparcialidade na elaboração de laudos também é debatida pela professora Maria Helena Patto, do Instituto de Psicologia (IP) da USP. Ela contesta a elaboração de laudos escolares, ou seja, relatórios psicológicos pedidos pela escola que explicam o desempenho de certos alunos. A professora é categórica ao afirmar que “o psicólogo reproduz o que quem pleiteia o laudo quer ouvir”. Ou seja, na maioria das vezes o laudo não aponta a escola como culpada pelo mau desempenho do aluno. Apenas o estudante seria responsável por não apresentar o resultado esperado.
Ainda dentro de sua crítica aos laudos escolares, Maria Helena fala sobre como a redação desses documentos “reduz o indivíduo a um amontoado de chavões, usando uma linguagem de auto-ajuda e revista feminina”. Para ela, boa parte desses laudos dá credibilidade a impressões e opiniões racistas. Além disso, muitos deles fazem uso de concepções mortas para a ciência, mas vivas para a sociedade. Ela cita como exemplo a expressão “baixa auto-estima”, encontrada em muitos relatórios, e sem qualquer embasamento científico. “O indivíduo não é um ser de clichês. Ele é um ser de sonhos e que vive inserido na sociedade”. Um laudo mal elaborado serviria apenas para validar nesse aluno o estigma do incapaz. A professora cita isso como um exemplo de como a ciência não é neutra, mas sim algo capaz de exercer violência e subsidiar dominação.
Para Audrey Setton, também professora do IP USP, é essencial incentivar nos alunos o posicionamento crítico em relação ao poder dos instrumentos de avaliação psicológica para formar psicólogos capazes de redigir bons relatórios. Audrey, também do Departamento de Psicologia da USP, explica que para preparar profissionais aptos a lidar com laudos é necessário muito mais que apenas ensinar técnicas de redação. É preciso capacitá-los “a compreender em que situação este instrumento está sendo utilizado, como integrar os resultados obtidos e como significá-los dentro de cada faixa etária, do contexto familiar, institucional e social no qual está inserido”. De acordo com Audrey, na USP, isso é feito através do acompanhamento dos alunos a elaboração de seus relatórios em uma série de disciplinas. “Além disso, há um acompanhamento mais individualizado dos alunos no processo de elaboração de hipóteses e divulgação dos resultados à família, à criança e instituições”.
No plano jurídico, Sidney Kioshi acredita que o laudo é necessário e importante. Seu papel é transformar em linguagem inteligível para o juiz a complexa dinâmica familiar em questão. Ele lembra que quando o tribunal bate o martelo o caso está encerrado para o magistrado, mas não para a família. Um laudo bem feito permite que seja elaborada uma sentença mais adequada àquela situação. Contudo, Sidney faz um aviso. “Não cabe ao laudo psicológico determinar, ou sugerir, uma sentença. Esse papel é do juiz, não do psicólogo”.