São Paulo (AUN - USP) - A sobreposição de decisões de tribunais nacionais e internacionais dificulta a efetivação dos mecanismos de proteção de Direitos Fundamentais. Esse é um dos temas do livro Transconstitucionalismo de Marcelo Neves, professor da Faculdade de Direito (FD/USP). Neves apresentou recentemente o seminário Transconstitucionalismo promovido pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI/USP).
De acordo com o docente, observa-se, atualmente, um entrelaçamento crescente entre as ordens jurídicas internacionais e os códigos de Direito interno de cada país. Trata-se de um fenômeno característico da sociedade global, o qual o autor definiu com o termo “transconstitucionalismo”.
Em muitas situações, a concorrência de uma mesma questão em diferentes fóruns legais leva a conflitos de interpretação e a decisões contraditórias. As ordens se confrontam com problemas nos quais pode haver uma tendência de imposição ou mesmo de violação de Direitos Fundamentais. Nesses casos, a orientação proposta pelo transconstitucionalismo é de incentivar a busca de soluções intermediárias.
Neves aponta, por exemplo, a suspensão da importação de carne bovina norte-americana tratada com hormônios esteróides pela União Européia (UE). Enquanto a Corte Européia de Justiça sancionou a proibição baseada no direito fundamental à saúde dos cidadãos europeus, o Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio condenou a UE por considerar a medida como protecionista e lesiva ao princípio do livre comércio. Segundo o docente, a controvérsia permanece pendente na medida em que não há uma hierarquia entre os órgãos. “(A situação) não se resolve simplesmente porque nenhuma ordem se impõe definitivamente”, diz ele. “Isso só pode ser superado pela tentativa de diálogos transversais.”
Infanticídio
O autor apresenta, em seu livro, situações jurídicas que desafiam a doutrina tradicional do Direito. Entre eles, destaca-se o caso dos Zuruahá, tribo indígena brasileira da Amazônia na qual há registros da prática de infanticídio em casos de nascimento de crianças com mal-formações congênitas. O costume causou revolta na bancada evangélica do Congresso Nacional, a qual apresentou, recentemente, um projeto de lei de ultra-criminalização dos executores do rito. Não obstante, de acordo com Neves, em termos de validade legal, a situação é muito mais complexa. “A autocompreensão da comunidade é muito diferente: eles partem do princípio de que vida só vale a pena quando há alegria e felicidade”, aponta o professor. Exatamente por isso, 56% das mortes observadas na tribo ocorrem por suicídio. “Eles se matam quando supõem que a vida traz tristeza para a comunidade ou para o próprio indivíduo. Nesse contexto, no caso das crianças, há a interpretação de que a morte é benéfica.”
Em tais circunstâncias, o transconstitucionalismo deve promover uma ordem diferenciada de comunicação, indo além do Direito Constitucional interno para evitar a imposição de uma visão unilateral de princípios jurídicos. “Só o transconstitucionalismo pode coordenar valores diversos quando não existe uma ética única”, afirma Neves.