São Paulo (AUN - USP) - A arte de resgatar histórias e brincadeiras que permaneceram na infância e trazê-las para o mundo real dos hospitais e das doenças, com benefícios comprovados para os pacientes, não é conto de fada. É o trabalho desenvolvido pela Associação Viva e Deixe Viver, organização não-governamental que atua em todo o Brasil através do voluntariado. O III Workshop “A descoberta do brincar e do contar histórias na saúde mental” foi realizado no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC) no final de maio. Valdir Cimino, fundador do “Viva”, e Ênio Roberto de Andrade, médico diretor do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do IPq, expuseram os ganhos da parceria entre as instituições, tanto para os pequenos pacientes, como para as mães e os próprios funcionários.
Criança não é “adulto em miniatura”
“O normal de uma criança é dar trabalho. Se ela não deu na infância, certamente ela dará na adolescência ou na fase adulta”, adverte o psiquiatra Ênio Roberto de Andrade. A partir dessa observação – de que o ideal para a criança é brincar – que uma nova abordagem foi incorporada à psiquiatria infantil: “Passamos a dar mais chance e vazão a esse espaço lúdico que é muito importante. Até então, não se tinha a ideia de oferecer à criança doente esse espaço. Infelizmente, a psiquiatria ainda sofre com o fato de as pessoas acharem que a criança é um adulto em miniatura. Elas não conseguem entender que ela é completamente diferente”, revela o médico.
É nesse novo contexto que se desenvolve o trabalho do “Viva”, que no Hospital das Clínicas atua nos Institutos da Criança (IC), de Psiquiatria (IPq) e de Ortopedia e Traumatologia (IOT). Os voluntários dedicam duas horas por semana a contar histórias para os pacientes e a eficácia é comprovada: 66% das crianças melhoraram o humor; outros 60% delas, o apetite e a disposição para correr e brincar pelos corredores (antes estavam apáticas), segundo estudo da psicóloga Claúdia Musca, realizado há três anos, com crianças portadoras de câncer, na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
“Era uma vez...” uma saúde mais humana
Dados do mesmo estudo ainda revelaram uma melhora de 46% na relação entre médicos, cuidadores e pacientes. E é justamente nessa área de relacionamento que Valdir Cimino sentiu a maior dificuldade do “Viva”. Além do preconceito de muitos profissionais da saúde contra a prática de contar histórias, os próprios voluntários não conseguiam perceber direito o elo que o “Era uma vez” proporcionava. Dessa lacuna surgiu a vontade de realizar pesquisas com cuidadores e funcionários, para entender mais como o voluntariado atuava sobre eles. Os resultados mostraram que maioria dos primeiros era composta de mães (89%) com boa escolaridade, e que elas também eram afetadas de maneira positiva pelo trabalho do “Viva”. “Essa mãe também precisa de cuidados”, diz Cimino. O mesmo aconteceu com os funcionários, que se sentiam mais valorizados e participativos dentro do processo de melhora da criança.
Com isso, a associação iniciou uma nova fase em que trabalha tentando resgatar valores de co-responsabilidade, cooperação e respeito. Nesse momento, o “Viva” quer expandir o ato de contar histórias também para as salas de espera de consultas. A ideia é promover a integração e participação de todos, inclusive dos gestores de hospitais e postos de saúde, que precisam dar mais autonomia de trabalho aos voluntários. Essa nova forma de atuar faz parte do movimento de “humanização da saúde”, presente em muitas esferas da medicina, e no qual o brincar tem um papel fundamental. As crianças que o digam.