São Paulo (AUN - USP) - Quem vive nos anos 2000 e nunca baixou uma música da internet que atire a primeira pedra. O que pouca gente sabe é que, ao fazer o download dos hits de sua banda favorita acaba ferindo os direitos de autor dos artistas.
A última Lei de Direito Autoral do Brasil é de 1998 e a proposta de reformá-la é tema de debate no Ministério da Cultura (MinC) desde 2004. Depois de passar pela pasta dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, é na atual gestão de Ana de Hollanda que as discussões tornam-se mais acaloradas.
Alberto Camelier, doutorando da Faculdade de Direito da USP especializado em propriedade intelectual, acredita que ainda é cedo para falar em avanços e retrocessos que a nova lei traria. O período de consulta pública do anteprojeto de Ana de Hollanda se encerrou no dia 30 abril. Depois de algumas sessões no Congresso e da passagem pela Casa Civil, a proposta voltará ao Congresso para ser julgada definitivamente. “Até lá, tudo que a gente falar é especulação”, afirma Camelier.
Mesmo assim, o doutorando ressalta alguns pontos importantes dos quais a lei deve se ocupar. O principal deles é o casamento entre os direitos do autor e do consumidor. Para Camelier, o desafio é fazer com que a informação atinja o maior número possível de pessoas e que, ao mesmo tempo, o autor receba seus direitos. “O autor tem que ganhar. Os titulares têm que ter o direito patrimonial respeitado. O consumidor tem que ter meios de alcançar essa obra por um preço justo” é a fórmula indicada por ele.
Desafios para o consumidor
Pagar um preço justo por livros, CDs e DVDs ainda é um desafio para o consumidor brasileiro. Segundo uma pesquisa realizada em parceria pelo Social Science Research Council e Fundação Getúlio Vargas, o preço alto da cultura é um dos principais motivos para a disseminação da pirataria em países emergentes. É uma via de mão dupla: as obras não são acessíveis para o consumidor e a pirataria prejudica os autores.
Segundo Camelier, o alto preço tampouco privilegia os artistas e escritores. A maior parte do dinheiro fica com as editoras, produtoras e gravadoras, que são responsáveis por conceber e distribuir a obra final. “O pessoal brinca que, se for viver de direitos autorais no Brasil, morre de fome. Poucos artistas realmente ganham dinheiro com direitos autorais”, afirma.
Pela lei de 1998, quem pratica pirataria pode ser multado e responder penalmente pela reprodução e distribuição de uma obra sem autorização. Porém, existem casos de exceção quanto ao direito autoral. Por exemplo, quando alguém faz uma única cópia de trechos de um livro para uso próprio e sem conotação comercial, o uso da obra é permitido sem o pagamento dos direitos ao autor. É o chamado fair use.
Para Camelier, o ideal seria que o livro todo pudesse ser copiado sob essas condições. “Pela Lei de Direito Autoral de 1973, copiar um livro não feria os direitos autorais. Falar em pequenos trechos é uma bobagem. Ou o legislador permite, ou proíbe de vez”, contesta. Segundo ele, a permissão de cópia restrita prejudica principalmente estudantes que não podem pagar pelos livros ou que precisam acessar obras esgotadas. “O governo pode dizer ‘vamos proibir’, mas pode também comprar o livro para quem não tem condições”, sugere.
A criminalização da pirataria continua no novo projeto de lei. Porém, as permissões ao fair use foram ampliadas para, por exemplo, fins didáticos, exibição de filmes por cineclubes sem cobrar ingresso, adaptação e reprodução de obras em formato acessível para deficientes físicos e cópia de obras esgotadas. A reprografia de livros inteiros nas universidades, no entanto, continua sujeita ao pagamento dos direitos ao autor.
Caiu na rede, é peixe
Se, na teoria, a lei dificulta o acesso dos consumidores a algumas obras, na prática, a internet contorna essa situação. Poucos pensam duas vezes quando têm que escolher entre comprar um CD ou baixá-lo de graça. Camelier explica que o alcance de proteção dos direitos autorais na internet pela legislação brasileira se restringe ao território nacional. O mesmo acontece nos outros países.
O doutorando acredita que um acordo internacional sobre o assunto melhoraria a situação. “A internet é um problema mundial. A OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual) tem que fazer um tratado para regulamentar o passeio das obras autorais [pela internet ao redor do mundo]”. Outra alternativa seria as gravadoras disponibilizarem as faixas na rede por um preço acessível. “A indústria fonográfica não pensa em como combater a pirataria na internet”, critica Camelier.
Por enquanto, o Estado não tem poder para controlar o que circula na internet. Segundo Camelier, autores que se sentirem prejudicados pela reprodução de suas obras podem contratar advogados e processar os infratores no âmbito privado, sem envolver o governo ou o Ministério Público. “A lei te dá ferramentas, você usa se quiser”.
Muitos artistas, no entanto, abrem mão dos direitos autorais e disponibilizam parte de suas obras na internet sem cobrança. Hermeto Pascoal, Gilberto Gil e a banda O Teatro Mágico são alguns partidários dessa iniciativa. Uma das maneiras de compartilhar as produções com o público é através do Creative Commons. Segundo seu site no Brasil, a ONG, “sem fins lucrativos, disponibiliza licenças flexíveis para obras intelectuais”.
O site do MinC abrigava algumas dessas licenças, que foram retiradas do domínio pela ministra Ana de Hollanda. A medida foi muito criticada, sobretudo por aqueles que defendem o maior acesso às obras pelos consumidores. Camelier concorda com a atitude da ministra. “Há outras maneiras de o consumidor ter acesso ao Creative Commons. [Disponibilizar a obra] é uma decisão particular. Você não pode colocar o Creative Commons como de interesse do governo”.
O MinC disponibiliza na internet um banco de obras que já caíram em domínio público (transcorridos no mínimo 70 anos desde a morte do autor). Quanto ao novo projeto de lei, não há nenhum indício de flexibilização quanto ao acesso livre às demais obras.
Arrecadação e distribuição
Outro ponto polêmico da mudança na lei diz respeito à fiscalização estatal do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). A instituição é privada, reúne associações de músicos e artistas, e é responsável por arrecadar os direitos autorais pela execução pública de músicas e distribuir o montante entre os titulares. O projeto de lei reformado exige eficiência e transparência do Ecad e das associações.
Camelier acredita que o trabalho do Escritório precisa ser fiscalizado pela sociedade civil através do Ministério Público. Para ele, nesse caso, a questão dos direitos autorais é de gestão coletiva. “O interesse da coletividade é que os músicos criadores sejam bem remunerados”.
Camelier compara o Ecad a um “paquiderme”, que “não anda na velocidade que deveria”. O advogado critica a falha na distribuição do dinheiro arrecadado. Recentemente, o jornal Folha de S. Paulo descobriu uma fraude no sistema do Ecad: o motorista Milton Coitinho dos Santos constava como beneficiário de R$ 127,8 mil em direitos autorais por trilhas sonoras do cinema nacional. O suposto compositor afirma que não toca nenhum instrumento musical. “Precisamos encontrar uma forma de o dinheiro chegar onde deve chegar”, avalia Camelier.
Para isso, uma das alternativas seria padronizar a forma de registro autoral das obras. Hoje, cada associação que faz parte do Ecad regulamenta esse registro de forma diferente. Camelier confirma: “Sem a padronização, se perde o controle. O padrão é uma ferramenta para ajudar a fiscalização”.
Ministra controversa
Em meio a tantos aspectos polêmicos que envolvem a Lei de Direito Autoral, a posição da ministra Ana de Hollanda tem sido criticada por muitos setores da mídia e da política. Camelier acredita que cinco meses à frente do Ministério não são suficientes para julgarmos as ações da ministra.
“Acho que temos que ser honestos, esperar pelo menos um ano para ver o que a ‘dona’ Ana de Hollanda faz. Se ela é somente a irmãzinha do Chico Buarque ou se ela é uma pessoa competente e respeitável, que realmente levou esse projeto colocando os interesses do Brasil acima de todos os outros”.
A íntegra da lei vigente e os principais pontos de mudança estão disponíveis no site do Ministério da Cultura: http://www.cultura.gov.br/site/