São Paulo (AUN - USP) - O Centro Acadêmico Guimarães Rosa (Guima), do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI), promoveu um debate acerca da arte árabe no contexto dos recentes conflitos na região. O evento faz parte do Maio Cultural, uma iniciativa anual dos alunos do Guima que reúne ao longo do mês de maio alguns debates, exibição de filmes e até um sarau. “Este ano o tema é Arte Engajada na América Latina, mas a gente não pode se furtar do que estava acontecendo no mundo árabe e tentou traçar um paralelo com a América Latina, tentando compreender o papel da arte nas revoluções”, diz o graduando em RI e membro do Guima, Pedro Charbel.
A primeira mesa “Arte, revolução e resistência no Mundo Árabe” contou com a participação do professor de literatura árabe da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e diretor da BibliASPA (biblioteca e centro de pesquisa do grupo de países da Aspa - América do Sul Países Árabes), Paulo Daniel Farah; com Sérgio Chuí, aluno da Letras graduando em árabe e membro da Frente Palestina da USP e também Demétrio Portugal, do centro Matilha Cultural e curador da exposição Egito em Obras.
Para Demétrio Portugal, “as relações culturais internacionais entre Brasil e Egito ou entre Brasil e outros países árabes tendam a ter uma curiosidade mútua pela proximidade que existe entre um povo e outro”.
“As artes árabes em geral, seja literatura, seja a pintura, a arte moderna e contemporânea são muito influenciadas pelos temas sociais e políticos. Para muitos pensadores, o papel do intelectual é sempre contestar o regime, contestar o poder seja ele qual for”, diz Paulo Farah.
A crítica nas charges
Paulo Farah inicia mostrando algumas charges árabes. Entre elas a imagem palestina de duas mãos formando uma árvore e a inscrição “Com nossas mãos, nós produzimos o futuro”. Segundo o professor, “a árvore é um símbolo na arte e na literatura árabe associado a ideia da terra, associado a ter um espaço próprio, aqui [na charge] é um símbolo próprio do movimento palestino”.
Outra charge, dessa vez da Líbia, mostra dois mísseis em queda, um em formato tradicional e outro em forma do Livro Verde, escrito por Muammar Gaddafi que apresenta suas doutrinas sobre temas diversos como política, economia ou a questão feminina. Acima há a frase “As milícias de Gaddafi bombardeiam as cidades líbias”. De acordo com Farah, trata-se de uma crítica tanto à intervenção externa quanto ao regime. “Na escola se usa esse livro, então há a ideia de que eles são bombardeados também com o livro porque não têm a opção de leitura”.
Uma charge que representa a “tsunami árabe” traz o efeito que as revoluções tiveram. Para Farah, “é o evento mais importante desde a queda do muro de Berlim. É importante saber a grande influência que essas revoluções têm na geopolítica mundial, há mudanças muito significativas”.
Outra imagem traz ainda um peixe grande, com a inscrição “interferência externa”, engolindo um peixe pequeno. “A intervenção externa sempre vai ser com interesse próprio e não em prol do interesse do outro. É a idéia de peixe grande que quer engolir o pequeno e se alimentar”, diz Farah.
A imagem mais polêmica é o desenho de um caixão que representa a morte da Al Qaeda. Três pregos fecham o caixão, representando os motivos para o suposto fim da organização. O primeiro prego é a revolução da Tunísia, o segundo prego é a revolução do Egito e o terceiro, mais controverso, é a morte de Osama Bin Laden. Farah compartilha a tese por trás dos dois primeiros pregos, segundo a qual as revoluções fortalecem o arabismo, ou seja, a união árabe e não um movimento religioso, o pan-islamismo.
“Defendo que essas revoluções demonstraram que suas reivindicações são legítimas e que não passam por nenhum tipo de extremismo religioso, mas sim por busca de melhorias sociais, de participação política, de emprego, de alternância de poder, entre outros”.
A vida árabe no romance
Passando à literatura, Farah destaca a natureza contestadora dos romances, que normalmente apresentam uma crítica social. Um autor de romances contemporâneo e bastante difundido no mundo árabe é Alaa al Aswany. É um escritor que participa ativamente de movimentos de contestação e de um movimento de protesto no Egito chamado “Basta”.
Um dos seus livros, Edifício Yacubian, mostra as dinâmicas sociais dentro de um único edifício no Cairo. Os cubículos do teto desse edifício decadente, os quais eram utilizados como depósitos quando o edifício abrigava a elite e, agora são a moradia de várias pessoas.
A partir da vida dos moradores dos cubículos, há uma série de questões que são discutidas no livro como extremismo religioso, corrupção, ditadura, impossibilidade de participação política, pobreza, injustiça, gênero, entre outras. Edifício Yacubian é um exemplo importante, já que “fora dos países árabes há uma ideia totalmente falsa de que não há reflexão crítica nessas sociedades”, diz. “Claro que quando há um regime de repressão é difícil que isso chegue a outros países, mas há, sim, uma reflexão que passa pela arte”, diz Farah.
O professor destaca o trecho da fala de um personagem do romance: “Nosso senhor criou os egípcios para aceitarem a autoridade do governo, e nenhum egípcio pode ir contra seu governo. Algumas pessoas são instigáveis e rebeldes por natureza, mas o egípcio mantém a cabeça baixa a vida toda para que possa comer. [...] Os egípcios são o povo mais fácil do mundo de governar. No momento em que você toma o poder, eles se submetem a você.”
“Há a ideia do conformismo e determinismo religioso e também há uma provocação, ou seja, quando o autor escreve isso ele quer uma resposta dos egípcios”, diz o professor. O protagonista do romance responde então: “A razão por que o país decaiu é a ausência de democracia. [...] A maldição do Egito é a ditadura, que frequentemente leva à pobreza, à corrupção e ao fracasso em todos os campos.”
Contestação na forma de música
Sérgio Chuí, por sua vez, destacou o hip hop palestino, ou seja, a música como forma de protesto e também como uma maneira de nós termos contato com a cultura e o pensamento palestino. Sobre a questão palestina, Farah diz que “com o movimento de arabismo, cada vez mais a população vai ter voz para expressar o repudio a situação de ocupação e violação dos direitos humanos. Isso dificulta o argumento de que os árabes são totalmente antidemocráticos e que há necessidade de uma presença externa civilizatória na região.”
O hip hop é um gênero que supre melhor a necessidade de falar. “É uma linguagem direta, você pode fazer em qualquer lugar, só é preciso a voz”, diz Chuí. O grupo palestino DAM foi o grupo que iniciou o movimento hip hop, que hoje se espalha do Marrocos ao Iraque. DAM significa sangue em árabe e eternidade em hebraico. O grupo faz questão de cantar em hebraico e em árabe e, inclusive, faz mais shows em Israel do que em território palestino. Chuí traduziu uma das músicas do grupo, na qual encontramos o trecho:
“Quem é o terrorista?
Eu sou o terrorista?
Como sou eu o terrorista quando você tomou a minha terra?
Quem é o terrorista?
Você é o terrorista!
Você levou tudo que eu tenho enquanto eu vivia na minha terra natal
Você está nos matando como você matou os nossos antepassados”
“No hip hop palestino, desde os primeiros grupos, a participação feminina foi muito importante”, diz Chuí. Logo após o surgimento do DAM, vieram outros grupos essencialmente femininos. Shadia Mansour é o exemplo de cantora palestina mais importante no cenário atual.
Revolução midiática
Demétrio Portugal faz questão de desmistificar a figura do árabe. “Aquela figura do árabe rancoroso e terrorista é, na verdade, uma ficção. O povo egípcio, assim como o povo árabe, é muito parecido com a gente. A mídia internacional usa a questão do terrorismo para criar um medo e justificar a utilização da força externa. O hip hop faz parte da contra-cultura e espera-se que ela seja o antídoto dessa cultura imperialista”.
Algumas características importantes da revolução egípcia para Portugal, que estava no país à época dos acontecimentos, são a ocupação do espaço público por vários segmentos sociais diferentes e a guerra midiática.
“As expressões ativistas tinham uma característica midiática muito forte. São manifestações da arte que flertam com a mídia e com a guerrilha de informação, ou seja, como utilizar as estruturas da comunicação ao seu favor”, diz Portugal.
Vídeos panfletários feitos pelos ativistas foram trazidos por Portugal. São manifestações multimídia para incitar o povo à conquista dos direitos humanos e civis. “Havia trinta anos de repressão no Egito e, sinceramente, eu me emociono ao ver a necessidade que o povo tinha de transformar isso. As manifestações artísticas, portanto, se adaptavam a um inimigo comum”.
Portugal traz ainda outro tipo de manifestação cultural, dessa vez mais urbana que são os grafites. Alguns dos desenhos espalhados pela capital do Egito mostram os mártires da revolução e satirizam a figura de Hosni Mubarak. “A tradição estética do desenho do povo árabe é muito forte. Eles desenham muito bem por causa da escrita”. Um dos grafites traz os símbolos da Lua crescente e da cruz juntas, representando a união das religiões muçulmana e cristã nas manifestações árabes.
“Todos esses movimentos como a charge ou o hip hop palestino servem para afirmar a identidade árabe e trazer os olhares do ocidente para essa região”, diz Chuí. “O povo exige a queda do regime” era uma das frases de ordem da revolução no Egito. A arte foi, então, uma das ferramentas desse povo na conquista de seu objetivo claramente definido.