São Paulo (AUN - USP) - O graffiti nasceu subversivo e se consagrou. Esta é a tese de doutorado de Bruno Giovannetti, defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Com 64 anos, nasceu no Brasil, mas foi para a Universidade de Pisa e na Itália ficou 20 anos antes de voltar. Além de pesquisador do Nutau (Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo da USP) e do Leer (Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP), Bruno é fotógrafo e dedicou seus últimos anos ao estudo do graffiti no mundo.
“Não tento dizer se é bonito ou feio, mas que o graffiti é um fenômeno, que existe há quase 50 anos”. Do modo como entendemos hoje, essa expressão artística surgiu no fim da década de 1960 em Nova York, “com a polícia atrás”. O primeiro registro é de 1968, de uma assinatura de um jovem de Philadelphia que repetia seu nome durante o trajeto que a namorada fazia até o trabalho – um claro exemplo de como o desejo na época era de se evidenciar, de dizer: “Estou aqui”. Surpreendentemente, poucos anos depois já havia uma aceitação por parte da elite de modo a valorizar o graffiti – o que por um lado garante mais valor e espaço ao graffiteiro, mas por outro o faz perder a espontaneidade.
Daí surge uma das maiores polêmicas: até que ponto o graffiti, sendo cada vez mais aceito e incentivado pela sociedade, se conserva como tal? O professor Armando Silva, da Universidad Externado de Colombia, considera que são necessários alguns parâmetros, como o caráter da efemeridade, do ser ilícito e contestador, da fugacidade, entre outros. Exemplos: Rui Amaral, uma das maiores personalidades da área no Brasil, tem uma obra gigantesca no túnel entre a rua Dr. Arnaldo e a Paulista que está há 15 anos lá, sendo, às vezes, retocada. Giovannetti já fotografou um graffiteiro pintando ao lado de sua mulher empurrando o carrinho de bebê. Nesses casos não existem as tais características que são, para muitos, a essência do graffiti - para os puristas, o não autorizado é o original. Quando Berlim comemorou os 25 anos do Muro de Berlim, os artistas ainda vivos que haviam pintado no muro foram convidados a refazer a arte, mas muitos não aceitaram, dizendo que o que eles haviam feito era estritamente vinculado ao calor do momento, dali não saía. O que pode acontecer é hoje o Muro ou a obra de Amaral serem consideradas mais como monumentos ao graffiti do que o nome em si.
Mesmo fora dessa discussão, tentar definir quais tipos de graffiti existem dentro de todo o espectro é uma grande dificuldade taxonômica. Dificuldade esta que barra em graffitis que migram para tatuagens, publicidades ou experimentalismos (usando, por exemplo, mangueiras de plástico no lugar do traço e da tinta, sucatas coladas ou recursos eletrônicos). E talvez seja um vício da Academia tentar classificar tudo, enquanto os que fazem a arte em questão não estão assim tão preocupados. A visão do movimento como vasos comunicantes pode ser mais adequada, também porque as fronteiras entre spray, stencil, colagens ou o que quer mais que seja é muito híbrida. “A evolução do graffiti é um work in progress, está e continuará aberto”.
A diversidade que se observa hoje já havia começado logo no início do movimento. Além de Nova York, na França e Itália o graffiti também estava sendo criado como instrumento revolucionário. Apesar dessa motivação em comum, adquiriu dois significados distintos: na América expunha a precariedade da vida de minorias negras e latinas no subúrbio da cidade, enquanto que na Europa era a propagação dos ideais de esquerda, contra o capitalismo, dos jovens estudantes da elite durante o maio de 68 (do qual Bruno participou, fotografando como estudante em Pisa).
A partir do momento em que a arte se espalhou, aumentou a concorrência entre os artistas, que passaram a criar mais na fantasia e na técnica. Nos EUA da década de 70, o underground virou marketing. Debaixo do chapéu do hip-hop, jovens estudavam melhor como ia ser o desenho e graffitavam (ilicitamente, claro) em vagões de trens e metrôs, que acabavam por atravessar enormes distâncias. México e Canadá recebiam os vagões, abarcando outros países em efeito dominó e cada vez mais essa expressão unia as periferias do mundo todo.
Essa arte já globalizada passou a ser, claro, alvo de empresas de publicidade e a movimentarem dinheiro. E um grande número de empresas associou seu nome ao tema: a Oi tem um outdoor na Estação de metrô Vila Madalena, a Petrobras publica em jornais e revistas, a Sabesp pinta muros com avisos, a Louis Vuitton e outras marcas famosas fizeram produtos com incursões no graffiti. Shephard Fairey criou o stencil do rosto de Obama, símbolo-mor da campanha. Graffiteiros ficam famosos, como aconteceu também com a dupla brasileira Osgemeos ou com o anônimo inglês Bansky. Muitos se perguntam: “Onde está o pé na rua?”. Pois: Fairey foi preso, meses atrás, por estar pintando em lugares não autorizados e a arte d’Osgemeos pode ser vista, com tinta fresca, pelas ruas da cidade . E mesmo oficialmente encarando o graffiti como arte, como aconteceu na Bienal de Arquitetura de 2009 (da qual Bruno foi curador da parte de graffiti), uma jovem havia sido presa meses antes por ter pintado externamente o prédio do MAC.
Do mesmo modo que é impossível pensar cidade sem graffiti, também o é sem a pixação. É igualmente complicado definir o que é cada um, mas algumas diferenças são claras: um, tendencialmente, quer agradar, outro quer irritar; um busca uma estética e um conteúdo a serem compreendidos, outro não tem a intenção de ser lido por qualquer um. Muitos, como Rui Amaral, dizem que o que sobrou do original do graffiti é a própria pixação, mas ambos seguem paralelos e, por vezes, se misturam.
Sendo ambos protagonistas irrefreáveis na paisagem urbana, como lidar – como os governos devem lidar - com algo que não quer ser controlado? Nova York e Londres mantém a postura da tolerância zero, inclusive tendo sido Bruno parado pela polícia londrina apenas por estar fotografando um adesivo. Cidades como Milão, Paris ou na Alemanha criam espaços “tolerados” ou reservados para a arte. Será que é possível considerar o que é pintado nas proibidas Nova York ou Londres mais válido do que nas permissivas outras cidades? A situação em São Paulo varia: o governo de Erundina era mais sensível que o de Maluf, na opinião de alguns grafiteiros. Recentemente visitou a capital paulista um grande artista francês, e a prefeitura manifestou o propósito de dar um maior incentivo em pintar escadarias da cidade e outros espaços de grande visibilidade. Em muitas cidades próximas de São Paulo, como em Santo André, cursos de graffiti são apoiados ou promovidos pelas Prefeituras.
Sobre a lei aprovada no último dia 26 pela presidente Dilma Rousseff – que regulamenta a venda de sprays somente para maiores de 18 anos com a inscrição de que pixação é crime e de que graffiti deve ter a autorização do dono do local - Bruno diz que texto similar já era conhecido pelos comerciantes de São Paulo. Aqui, então, pouca diferença deve fazer, a diferença é que agora vale para o Brasil todo. E, de qualquer modo, “não vejo tanto sentido nessa lei, porque não há como rastrear o spray usado por alguém – não é isso que vai regulamentar o graffiti na cidade”.
Tendo a opinião mais urbanista ou mais romântica em relação à restrição ou liberdade do graffiteiro, não há como negar que, por um lado, essa expressão pode gerar tanto uma poluição visual na paisagem (“Posso não querer uma imposição de um graffiti no muro da minha casa, mas tampouco quero um outdoor da Marlboro quando abro a janela”), quanto uma abertura a melhorias no cenário urbano. Há quatro anos, uma pequena praça na rua Apinajés era somente mais um canto onde entulho era jogado sem escrúpulos. Bruno morava perto e ele próprio colava faixas de proibição – sem sucesso. Até que incentivou, acompanhou e fotografou um projeto de revitalização da área, que a transformou em um exemplo para o bairro e pauta para a mídia após a pintura de um mural. Nos prédios do complexo habitacional de Cingapura, em São Paulo, (veja aqui vídeo http://www.flickr.com/photos/gnomos/5081130872/), as superwalls criadas acabaram virando pontos de referência na paisagem da Zona Norte.
Tal noção de aproveitar o graffiti no contexto urbano já havia sido observada pro Bruno em uma conferência no ano de 2002, em Brescia, Itália. Diversos arquitetos e urbanistas lá reunidos concordavam que a arquitetura de meio século para cá era essencialmente cinza, seguidora da ditadura do less is more. Em contraposição, o homem possui dentro de si o chamado horror vacui, a necessidade de espontaneamente preencher espaços vazios. “E tal elemento humano é praticamente o cerne do graffiti, por que não sugar a força que dele pode ser sugada?”
Essa discussão se estende por décadas e por quilômetros, mas o que Bruno Giovannetti destaca e guarda como imprescindível em seu estudo é o respeito que tem pelos artistas. Ele bateu mais de 15 mil fotos em suas viagens pelo mundo, mas nunca chegava com a lente já ameaçando o graffiteiro no muro. “O melhor fotógrafo é que aquele se anula, que se apaga perante o que está fotografando”. Primeiro o contato amigável é feito, depois a conversa (que pode levar horas enquanto o outro pinta) e por fim, as fotos são tiradas, na casualidade do momento e como modo de cristalizar a efemeridade da arte. Essa proximidade com os artistas permitiu a Bruno entender algumas tênues noções.
Alguns anos atrás, foram reunidos para uma exposição em São Paulo e em Milão dez artistas brasileiros e dez italianos. Bruno diz que a diferença era clara: enquanto os europeus eram muito mais preocupados com a tradição do graffiti e se sentiam representantes da arte, os brasileiros se voltavam apenas para a criação em si, apresentando mais criatividade em seus trabalhos. Algo mais profundo: existe um senso comum entre os graffiteiros de que é errado pintar por cima de um muro que acabou de ser graffitado, não se sabe quanto tempo deve ficar lá exposto, mas de repente é certo quando ele deve ser repintado.
E desde que os muros sejam repintados e repintados, não importando a questão legal ou política envolvida, desde que a expressão artística mantenha-se viva, não importando se com o rótulo de graffiti ou não, a criatividade humana agradece.