São Paulo (AUN - USP) - O trabalho infantil na agricultura, indústria e comércio é rigidamente proibido pela legislação brasileira e altamente combatido pela mídia e por diversas campanhas governamentais. De acordo com a Constituição brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), é proibido qualquer tipo de trabalho para menores de 16 anos, com exceção de aprendizes, a partir dos 14 anos. No entanto, constantemente vemos crianças e adolescentes trabalhando livremente no meio artístico, na televisão e em comerciais. Em poucas oportunidades esse trabalho é questionado pela mídia em geral e pela opinião pública. Mas até que ponto essa atividade é saudável para o jovem? Até que ponto sua vida não é prejudicada?
Com o objetivo de discutir esse assunto e colocá-lo em evidência, a advogada Sandra Cavalcante escreveu o livro Trabalho Infantil Artístico: do Deslumbramento à Ilegalidade, lançado no dia 7 de junho. A obra é resultado de uma pesquisa, realizada entre os anos de 2008 e 2010, para a monografia do curso de Especialização em Direito do Trabalho, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Formada pela Faculdade de Direito São Francisco, Sandra tem dado continuidade à pesquisa na área do trabalho infantil artístico. Este ó tema de seu curso de mestrado na Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP).
“O talento e a expressão artística são positivos para a criança e o adolescente, e o ajudam no seu crescimento educativo e na sua formação plena como ser humano. Porém, quando sua condição de vida é prejudicada e seu talento é alvo de exploração econômica, o trabalho artístico pode se tornar um problema”, afirma a advogada, especializada em Direito Ambiental e do Trabalho. Nesse sentido, Sandra quis colocar em discussão o quanto o trabalho artístico interfere no crescimento da criança e no seu aproveitamento da infância.
Para a criança, ser modelo, atuar em novelas e aparecer em comerciais parece ser algo especial, mexe com seu imaginário e representa a realização de um sonho. Para os pais é como uma vitória, e pode até significar a melhoria da qualidade de vida. Apesar do glamour e beleza que o meio artístico envolve, ele esconde o sacrifício, as dificuldades e o esforço pelos quais os atores têm que passar para atingir o resultado desejado. Quando se trata da criança, o desafio é ainda maior, pois ela cansa mais rápido, tem menos paciência de repetir cenas e mais fragilidades. Dessa forma, Sandra quis colocar o tema em discussão, de modo que as condições de atuação das crianças fossem mais respeitadas.
“Fiz teatro amador e tenho irmão ator, por isso sempre fui interessada no assunto. Mas o estopim foi quando acompanhei por um dia inteiro a gravação de 18 capítulos de uma telenovela, com artistas mirins”, explica Sandra. A novela cuja gravação ela assistiu foi Revelação, do SBT, e o cachê para as crianças era de R$ 60. Neste caso, elas atuaram apenas como figurantes. A partir disso, Sandra aprofundou suas pesquisas para analisar o ambiente de trabalho infantil artístico. Ela consultou doutrinas acadêmicas, análises sobre o tema, leis e jurisprudências (decisões dos tribunais) relacionadas ao trabalho infantil artístico.
Em meio a textos analíticos e acadêmicos, a polêmica sobre o assunto é grande: as opiniões vão desde aqueles que defendem a liberação total da participação de crianças no meio artístico, alegando que não é trabalho, àqueles que querem a proibição total, sem exceções. Nesse sentido, a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada pelo Brasil, autoriza a concessão de alvarás de permissão para o trabalho infantil artístico, depois de pedido dos pais e exame de um juiz.
Normalmente, apenas os grandes papéis têm alvarás judiciais. No entanto, a maioria dos trabalhos para crianças no meio artístico é de importância menor, como figuração e rápidas aparições, os quais não possuem alvará. Mesmo assim, a atividade demanda esforço das crianças Por esse motivo, grande parte das jurisprudências nessa área são relativas a processos do Ministério Público contra emissoras e produtoras. Estas, por sua vez, alegam o acompanhamento e a permissão dos pais, o que, legalmente, não garante a permissão para o trabalho da criança no meio artístico.
De acordo com Sandra, as crianças ficam à mercê da produção, e não tem suas necessidades e direitos respeitados. O clima de prazo constante, de exigências e de estresse do meio artístico é desgastante para os jovens. Em alguns casos, por exemplo, crianças têm que vestir roupas de verão em um frio intenso e repetir cenas dezenas de vezes. Quando os jovens participam do processo de seleção e não são aprovados, as conseqüências são ainda piores, pois, além do cansaço da atuação, eles ainda sofrem com a frustação de não conseguirem o papel.
A advogada defende que a produção fique à mercê da criança, de modo que esta seja respeitada e tratada de forma cuidadosa. “Acredito até que seja possível a criança trabalhar no meio artístico e ter uma experiência positiva, contanto que suas necessidades e limitações físicas e mentais sejam respeitadas, em um ambiente mais tranquilo. Ela também precisa de horário de estudo e de diversão, seu crescimento e sua convivência com outras crianças não podem ser prejudicados”, afirma Sandra. Em suma, o tratamento da criança tem de ser muito mais humano.
Diferentemente de outros países, como Estados Unidos Argentina e Portugal, o trabalho infantil artístico no Brasil não é regulamentado. O Ministério Público do Trabalho tem como proposta um conjunto de normas e recomendações que, caso aprovado, melhorará as condições do trabalho artístico infantil. Uma delas, por exemplo, seria a obrigatoriedade de depósito do cachê da criança em uma conta fechada, que só poderia ser utilizada quando ela atingisse a maioridade. Outra seria a permissão à participação infantil apenas quando ela fosse essencial ao espetáculo ou produção, como nas filmagens da história de uma criança.