São Paulo (AUN - USP) - Thaís Cristina Silva de Souza percebeu, enquanto fazia aulas de mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), a ausência de trabalhos brasileiros que contemplassem a situação de cortiços no país. Histórica, social e urbanisticamente importantes para o cenário urbano, será que os cortiços estavam de acordo com a Lei Moura, n˚10.928/1991, que teoricamente regulamentava a adequação habitacional desses locais? Com o objetivo de descobrir isso entre 30 cortiços do centro expandido da cidade de São Paulo, Thaís acabou por encontrar resultados e conclusões notáveis.
O primeiro relatório sobre cortiços data de 1893, sobre os da Santa Ifigênia, tendo sido publicadas na época, inclusive, notícias sobre o assunto no jornal O Estado de S. Paulo. Mas antes de tudo, quais as características de um cortiço? É uma casa subdividida e subalugada, em que existem banheiros, tanques, acessos e áreas comuns, em que as funções familiares são exercidas no mesmo cômodo e em que as instalações hidráulicas e elétricas são precárias.
Além disso, não existem números exatos ou recentes a respeito: de acordo com o Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) existiam 1.588 de imóveis encortiçados em 2001; segundo a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), o número era de 1.648 em 2001 e de 1.587 em 2004, totalizando aproximadamente 6.350 pessoas vivendo na precariedade. No passado, havia vários tipos deles, como o hotel cortiço ou o cortiço de quintal, mas atualmente o mais comum é o originado de um casarão antigo.
Desde 2008, os programas de fiscalização e atendimento consistem na parceria entre a Prefeitura Municipal de São Paulo e o Programa de Atuação em Cortiços (PAC), da CDHU, pertencente à Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo. À primeira cabe a fiscalização da situação dos cortiços (e eventualmente multá-los) e, à segunda, atendimento dessas famílias na forma de construções de prédios para elas, na entrega de cartas de crédito ou em ajudas de custo. O programa da CDHU tinha a meta de atender cinco mil famílias entre 2002 e 2007 e mais seis mil até 2001, totalizando 11 mil atendimentos. O resultado é outro: no primeiro período, mil famílias receberam atendimento, e no segundo, até 2010, o total era de 2.740, abaixo até mesmo da primeira meta. O argumento da CDHU é de que houve uma redução de recursos subsidiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, e a justificativa da Prefeitura Municipal sobre a falta da fiscalização em todos os cortiços era de que não possuíam corpo técnico suficiente para as atividades.
Um baixo percentual
Esses resultados estão intimamente ligados com o trabalho de Thais de checar as condições de 30 cortiços dos bairros Mooca, Brás, Belém, Liberdade, Bela Vista, Cambuci, Santa Cecília, Barra Funda e Pari. O número escolhido para a pesquisa deve-se a uma questão de metodologia e são aqueles que autorizaram a entrada dela para observação, medição e conversa com os moradores.
Desses 30, nove estavam na situação de maquiagem: haviam sido autuados pela Prefeitura a se adequarem de acordo com a lei - revestirem e fazerem banheiros (um para no máximo 20 pessoas), trocarem janelas, fazerem abrigos para botijões de gás externos, comprarem extintores, entre outros -, mas tinham apenas pintado suas fachadas, como para inibir o fiscal a voltar ao local. Onze estavam ainda realizando reformas. Um não havia feito absolutamente nada, apesar de autuado. Seis haviam sido atendidos, e entre eles, dois haviam sido demolidos após o atendimento (em um, o dono não o transformou em nada, e o outro virou um estacionamento), um é, hoje, um conjunto habitacional da CDHU e os outros três estão interditados. Enfim, de todos os 30 cortiços, apenas três estavam de acordo com a Lei Moura, e por isso não precisavam do atendimento: o n˚403 da rua Uruguaiana, o n˚1.503 da avenida Celso Garcia e o n˚333 da rua Lopes de Oliveira, este último o cortiço em melhores condições.
Por trás da fachada
Com sua pesquisa e seu resultado, Thais não teve contato apenas com dados e descrições dos cortiços que visitou. Em suas visitas, que continuam até hoje, ela entendeu mais da vida dos moradores. Entendeu que, apesar das condições precárias em que muitos deles viviam, preferiam morar num cortiço no Centro por causa da praticidade de deslocamento e do contrato informal e sem burocracia que tinham com o estabelecimento. Aí também Thais compreendeu que muitos pagavam às vezes um terço da renda familiar, a qual consiste entre zero e três salários mínimos, com o aluguel de em média R$ 500 (uma média atual do preço, que não é tabelado) por um cubículo de 10 metros quadrados - uma exploração descarada por parte dos sublocatários (intermediários), que por sua vez pagavam um total de aluguel muito menor para o dono do local. Nada na Lei Moura diz sobre os intermediários, mas mesmo se tivesse, Thais reflete: “Do que isso adiantaria sendo que nem as outras cláusulas ainda não estão totalmente sanadas? Não é somente pela lei que a situação vai mudar, temos que encontrar outras soluções”.
Seu trabalho também tem um caráter de denúncia e alerta. “Os programas ainda são claramente deficientes: as metas não foram cumpridas e existe uma enorme falta de prioridade para com essa população! Se a parceria entre a CDHU e a Prefeitura deu certo, por que não aumentar o número de atendimentos, qualidade dos empreendimentos e a fiscalização desses imóveis?”. Não apenas isso, mas também trabalhar no sentido de reavaliar o programa, para trabalhar junto dos moradores para promover a auto-gestão e mutirões, de ter um aspecto mais socioeconômico e cultural, e para isso haver um maior entrosamento com ONGs e com os Movimentos Sociais.
“É claro que não há somente pontos negativos: é perceptível a melhoria nos ambientes com reformas, o não aumento do preço dos aluguéis por causa dessas reformas e a satisfação dos moradores. Mas é perceptível do mesmo jeito que muito ainda pode ser promovido para melhorar a qualidade de vida de quase 6.350 mil pessoas da cidade”. E conclui: “Você muitas vezes passa na frente de um cortiço e nem imagina que por trás dele existem dezenas de pessoas que moram numa situação dessas. Para muitos, os cortiços ainda são invisíveis e foi por isso que tentei mostrá-los”.