São Paulo (AUN - USP) - Não é de hoje que a soja se tornou um dos principais componentes da balança comercial brasileira – é só observar os dados das últimas décadas para comprovar tal fato. Mais interessante, porém, é perceber a mudança das características que seu plantio sofreu no decorrer dos últimos 50 anos, seja em sua localização ou em sua maneira de organização – prezando por uma estrutura de governança familiar ou patronal. Uma boa análise dessa trajetória da oleaginosa foi feita em uma tese de mestrado defendida no dia 6 de maio de 2011, na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA). A pesquisa, que foi realizada por Raquel Sivestrin Zanon, tem o nome de Organização familiar agrícola: o caso da produção de soja no Sul do Brasil, e versa justamente sobre as diferenças existentes entre o cultivo da soja nas regiões Sul e Centro-Oeste.
Traçando uma perspectiva histórica, o trabalho se focou no estado gaúcho por este ser o mais tradicional nesse cultivo específico dentro do Brasil, e por boa parte da produção do grão ser feita através de propriedades familiares. “Nessa região [Sul], a produção desenvolveu-se de forma familiar, estrutura que representa 85% dos estabelecimentos e é responsável por cerca de 40% da produção de soja do estado, conforme o Censo Agropecuário de 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”, explica Raquel. Entretanto, tais características não se mantiveram quando da mudança de muitos agricultores sulistas para o cerrado. O custo da terra mais baixo permitiu a eles comprar propriedades com tamanhos maiores do que no Sul – algo que favoreceu a ocupação do interior do país. Tal tamanho de propriedades, por sua vez, “favoreceu a exploração patronal, uma vez que a mão-de-obra disponível era em quantidade inferior à observada no Sul”, de acordo com a pesquisadora.
Quando questionada a respeito das características principais da agricultura familiar, a autora da tese responde que “suas principais características são o trabalho familiar, aliado à combinação entre propriedade, gerenciamento e trabalho”. Tal estrutura representa cerca de 12 milhões de trabalhadores, o que corresponde a cerca de 75% dos empregos no setor agropecuário, sem falar que responde por 87% da produção nacional de mandioca, 70% de feijão, 46% de milho e 34% de arroz, segundo o referido levantamento. Tal volume e importância gerou, por parte do governo federal, em 1996, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que na safra 2007/2008, teve um orçamento de cerca de R$ 9 bilhões, e tem como principal objetivo oferecer crédito subsidiado aos produtores familiares.
Raquel, ao longo de seu texto, exibe benefícios e desvantagens que existem a partir da estrutura familiar. Entre os principais pontos positivos, podem ser citados uma necessidade menor de monitoramento, maior proteção contra oportunismo, – “uma vez que todos serão afetados pelo resultado do trabalho de forma mais direta do que no trabalho assalariado”, explica a especialista – um bom compartilhamento de informações, trabalho e equipamentos entre diferentes famílias e uma maior flexibilidade e resistência, sem falar no já citado crédito governamental. Porém, nesse sistema também existem problemas, como um menor nível de educação formal, a necessidade de conciliar o ciclo do negócio com o da família, e maiores custos de saída na atividade. Além disso, existem certas características peculiares muito interessantes, como o fato das famílias morarem na propriedade onde produzem: “A residência na propriedade possibilita um melhor acompanhamento da produção e a atuação tempestiva frente a eventos inesperados”.
Com o passar do tempo, porém, algumas questões problematizam a agricultura familiar. Assim como em outros negócios com tal essa estrutura, muitas são as gerações seguintes que não tem vocação ou entusiasmo para com a atividade. No cultivo da soja no Sul do país, há uma preocupação por boa parte dos agricultores: muitos deles acreditam que o negócio terá sucessores na família, mas muitos herdeiros tem a intenção de se mudar para a cidade ou desenvolver empreendimentos não-agrícolas. Como respondeu Raquel, muitas vezes, “em alguns locais, a sucessão é discutida com os filhos de produtores, com vistas a buscar uma solução para o problema”. Outra pergunta é como competir com grandes produtores – no caso específico, os agricultores do Centro-Oeste. Uma alternativa encontrada pelos sulistas foi a união em cooperativas, baseadas em redes de “troca de informação, de encontro dos produtores, bem como fornecedor de insumos e comprador da produção”, e que contam com impostos diferenciados por parte do Estado. Entretanto, segundo a especialista, tal ideal em alguns lugares não obteve sucesso, “em função da quebra de confiança. Diversos foram os casos de descumprimento de acordos, com falta de pagamento da produção entregue pelos agricultores, que passaram a não mais aderir a essas associações”.
Após contrapor vantagens e prejuízos do sistema familiar é interessante tentar perceber perspectivas do mesmo – o que, afinal, explica sua existência, ainda, em um ambiente de crescente industrialização? Raquel responde que custos menores de transação e produção – e - através da mão-de-obra familiar – e favorecem níveis de confiança em tal modelo, assim como incentivos por parte do governo para a manutenção dessa governança. Além disso, vale citar que "o gosto pela atividade e a qualidade de vida proporcionada pela área rural contribuem para a continuidade dessa estrutura organizacional".