São Paulo (AUN - USP) - Atualmente, diversas instituições estão envolvidas com o acolhimento institucional de crianças e adolescentes no Brasil. Além dos próprios abrigos, existem também os órgãos do Sistema de Justiça (Vara da Infância e Juventude, Ministério Público e Defensoria Pública), das instituições de saúde, Conselhos Tutelares, Conselhos de Direitos da Criança e Adolescente, entre outros.
O psicólogo Mathias Glens, mestre do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP) explica como funciona a relação entre essas instituições: “Todas elas formam o que chamamos de Sistema de Garantia de Direitos (SGD). Tal organograma institucional vem sendo construído a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e deve ser pensado não como uma simples soma de instituições, mas como uma rede, ou seja, um conjunto não-hierárquico de parceiros, no qual cada um dá continuidade e também fiscaliza o trabalho do outro.”
Mathias Glens propôs-se a traçar um panorama sobre o desenvolvimento das políticas de acolhimento institucional, em sua dissertação Órfãos de pais vivos: uma análise da política pública de abrigamento no Brasil.
A trajetória do abrigamento
Num primeiro momento, percebe-se que o Estado e a sociedade trataram tais crianças e adolescentes de modo preconceituoso e excludente. Nesse sentido, é importante lembrar que a internação em grandes instituições totais, segregava os “internos” de qualquer contato com o mundo exterior, foi a regra em grande parte do passado. “Percebemos que o modelo da internação ora culpabilizava a família dessas crianças, elegendo-a como responsável pelo ‘fracasso’ de seus filhos, ora eles próprios eram responsabilizados. Na realidade, estamos diante de uma estratégia ideológica de individualização dos conflitos sociais. Para a ideologia dominante na época (que continua presente até os dias atuais) as razões para o abandono, violência e criminalidade eram individuais e, nesse ponto, a psicologia e a psiquiatria exerceram um papel significativo na sustentação desse discurso excludente, fornecendo uma roupagem supostamente científica aos preconceitos sociais”, observa Mathias.
Atualmente, a questão da internação é restrita aos adolescentes que cometeram algum tipo de infração. “Antigamente, tanto os infratores quanto os que tiveram seus direitos violados eram colocados na mesma instituição, o que gerava algo que na minha pesquisa denominei de ‘indiferenciação da demanda’. Para as crianças e adolescentes vítimas de violência, que são o público-alvo dos abrigos hoje, devemos pensar não em medidas de internação, mas em medidas de proteção”, observa o psicólogo.
Em relação à eficácia da internação, Mathias ainda vê deficiências: “Para o sistema de medidas sócio-educativas atual, assim como para o sistema criminal, o mais importante é o estabelecimento da culpa, que é o que viabiliza a punição. É simplesmente um mecanismo institucionalizado de vingança. A ressocialização só é possível quando o agressor compreende os impactos negativos que causou na vítima. É preciso que ele se coloque no lugar de sua vítima. E isso a simples punição não faz.” Nesse sentido, práticas como a Justiça Restaurativa, que ainda são incipientes no Brasil, tentam conceber formas de responsabilização que não passam apenas pela punição individual do infrator.
A importância do ECA
O início da superação da cultura asilar, da organização dos serviços nos moldes das grandes instituições totais, é um avanço alcançado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, já que exige, em seu artigo 92, que os abrigos promovam atendimento em pequenos grupos, com contato com a comunidade do entorno, sem desmembrar grupos de irmãos. O pesquisador explica que, em síntese, a proposta é que esses serviços não tenham mais a prisão como modelo, mas sigam o paradigma e funcionamento de uma casa normal. O ECA ainda estabelece que o abrigamento deve ser regido pelo princípio da provisoriedade. Ou seja, mesmo quando ele for absolutamente necessário, deve ser o mais breve possível.
A realidade dos “órfãos de pais vivos”
Genericamente, a maioria das crianças e adolescentes abrigados são meninos, negros, entre 7 e 15 anos de idade. Outro ponto que merece destaque é que a grande maioria das crianças e adolescentes que vive em abrigos possui família.
Observando os perfis psicológicos, a característica que mais chamou a atenção do pesquisador foi o que ele denominou de “medo da re-atualização da violência”. “Basicamente, considero que essas crianças e adolescentes promovem um ‘teste de vínculo’ a cada nova relação que estabelecem, ou seja, por terem vivido um processo violento e doloroso em relação à constituição de vínculos muito fundamentais e estruturantes da subjetividade”, explica. “Como os vínculos parentais, eles passam a colocar à prova todos os demais vínculos que se tenta construir com eles. E esse teste pode ser violento e, na maioria das vezes, é.”
Foram identificados ainda graves fragilidades na rede de políticas públicas (educação, saúde, assistência social, sistema de justiça, entre outras) que deveriam dar apoio aos abrigos. Sem esse apoio, os serviços de acolhimento institucional passam a trabalhar totalmente isolados e acabam erroneamente sendo responsabilizados pelo fracasso de toda a rede de proteção. “Os abrigos são instituições que só fazem sentido dentro de uma rede de políticas sociais básicas que realmente funcione”, observa o psicólogo.