São Paulo (AUN - USP) - Em uma época em que sustentabilidade é palavra de ordem, a exploração da candeia (Eremanthus Erythropappus) para a produção do alfa-bisabolol, produto natural largamente empregado na indústria de cosméticos, ainda não se enquadra em um padrão de manejo sustentável da Mata Atlântica, mesmo depois de dez anos de esforços nesse sentido.
Essa é a conclusão da pesquisa Sustainable and Competitive Alpha Bisabolol in Brazil, que será apresentada no Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais (Abri) em julho. Essa é a quarta pesquisa realizada dentro de um programa de parceria que entre o Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI), através do Instituto de Relações Internacionais (IRI), através do Centro de Estudos das Negociações Internacionais da USP (Caeni), e a School of International and Public Affairs (Sipa) da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.
Os envolvidos no projeto são os cientistas sociais, Ana Paula Malavazi e Pietro Rodrigues, mestrando em ciência política, Flávia Donadelli, mestranda em relações internacionais e o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, João Paulo Cândia Veiga. Há ainda quatro pesquisadores da Sipa, Andrew Clark, Nancy Khweiss, Lina Salazar e Leona Verdadero.
Para Veiga, é importante ter a Universidade de Columbia no projeto porque “quando temos um parceiro de peso e se publica em inglês, há mais chances de repercussão”.
A árvore da candeia é típica da Mata Atlântica e é encontrada no Sudeste do Brasil, principalmente no Estado de Minas Gerais. Do ponto de vista econômico, a extração dessa madeira é altamente lucrativa.
O tronco da candeia é muito utilizado para estender arames de cerca, demarcando terrenos rurais, porque é uma madeira que chega a durar 30 anos sem apodrecer. O moirão (estaca grossa) custa R$ 35 a dúzia.
O segredo para a conservação da madeira é uma substância de defesa produzida pela própria árvore que combate fungos e bactérias. Os pesquisadores acompanharam o processo de produção dessa substância, conhecida como alfa-bisabolol, que é retirada da fibra da madeira através do refinamento do óleo da candeia. Cada metro cúbico da madeira pode gerar 9 quilos de óleo e cada quilo de óleo chega a custar US$ 80. Já o preço do quilo do alfa-bisabolol chega a € 110 para os distribuidores internacionais.
O alfa-bisabolol tem propriedades anti-inflamatória, antibacteriana, calmante, desodorizante e de cicatrização de feridas. Por isso, está presente em diversos produtos como tintura de cabelo, xampu, loções pós-barba, creme para pele, protetor solar, cremes dentais, batons, entre outros.
“Estamos falando de um recurso natural de uma área nativa de Mata Atlântica brasileira. O Brasil tem o monopólio desse produto usado em escala mundial, já que outras espécies de candeia dos países da América Latina não viabilizam economicamente a extração do alfa-bisabolol”, diz Veiga.
Manejo sustentável
Em fevereiro de 2000, o jornal O Globo denunciou a “máfia da candeia”, que praticava o corte indiscriminado da madeira, inclusive dentro de parques estaduais em Minas Gerais. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) procurou, então, a Universidade Federal de Lavras (UFLA) para que fosse realizado um projeto de manejo sustentável da candeia.
Na época, a UFLA desenvolveu o Projeto Candeias, o maior estudo de manejo sustentável de uma planta nativa no Brasil. A partir desse plano de manejo, as etapas da regulamentação da exploração foram definidas. “A candeia é a única árvore no Brasil que tem legislação própria para exploração”, explica Ana Paula.
A ideia era adequar as empresas produtoras do óleo a um projeto sustentável de extração, em vez de perseguir exaustivamente o desmatamento ilegal.
O Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF) é o órgão responsável por expedir as licenças ambientais que limitam a quantidade de madeira a ser extraída e fiscalizar a exploração. Os donos dos candeiais em conjunto com as empresas extratoras de óleo, entram com um processo de plano de manejo nas unidades do IEF para cada área a ser explorada. Após a verificação documental e física, o IEF emite o Documento Autorizativo de Intervenção Ambiental (Daia) com a quantidade de madeira liberada para exploração. Após o corte e a retirada da madeira, as empresas têm o compromisso de encaminhar relatórios ao IEF no intuito de mostrar que o manejo florestal proposto no plano foi aplicado.
“O marco regulatório é local porque, economicamente falando, a extração da candeia só é viável em Minas Gerais”, explica Veiga. Desde 2000, a extração ilegal e as denúncias diminuíram na região, até porque o plano de manejo pensado pela UFLA é simples e barato, do modo que as empresas puderam adotá-lo facilmente.
No entanto, as instituições locais têm dificuldade para centralizar e acompanhar os planos de manejo da candeia. “O IEF não tem estrutura e não é obrigado a ir até as propriedades verificar se o que está sendo dito nos relatórios está sendo cumprido. Não tem um acompanhamento que garanta a proposta”, diz Ana Paula.
“É nessa imperfeição das instituições que há o espaço para extração ilegal e, por isso, há uma diferença entre a quantidade de óleo produzida e o que foi legalmente expedido a partir das licenças concedidas”, diz Veiga.
Mercado monopolizado
A iniciativa da pesquisa partiu de uma desconfiança de que, mesmo com os esforços do Ibama, da UFLA e do IEF, a produção do alfa-bisabolol ainda não podia ser considerada sustentável. “O que queremos constatar com a pesquisa é que existe uma quantidade superior de óleo no mercado do que o foi autorizado pelo IEF para ser extraído”, diz Ana Paula.
Atualmente, o cenário de produção do óleo da candeia é composto por cinco empresas, das quais três produzem o alfa-bisabolol. Segundo os pesquisadores, a empresa líder do mercado é a Citróleo, que domina a produção em mais de 50%. Entretanto, a empresa que serviu de caso para a pesquisa foi a Atina, pois é a única empresa que possui todos os certificados e apresentou uma organização na cadeia produtiva de forma responsável e transparente.
Essas cinco empresas juntas produzem de 100 a 120 toneladas por ano de alfa-bisabolol, sendo que cerca de 98% do produto é exportado. A distribuidora de produtos químicos alemã, Symrise, compra de 60% a 70% do alfa-bisabolol brasileiro e, por isso, acaba influenciando fortemente o preço do produto. A partir daí, o produto é distribuído para indústrias de cosméticos do mundo todo como L’Oreal, Avon, Clarins, Channel, Johnson & Johnson e chega até a ser importado novamente por empresas brasileiras.
O porém é que essas empresas pagam mais caro pelo alfa-bisabolol porque, ao passar pela Alemanha, o mesmo adquire status de produto industrializado e, mesmo que a Symrise não tenha feito nenhum tipo de alteração na substância, há agregação de valor. O preço do quilo de alfa-bisabolol varia entre € 95 e € 110 na margem do distribuidor.
“Apesar da cadeia do alfa-bisabolol ter poucos atores nacionalmente, é uma cadeia que vincula grandes empresas como a Symrise. Apesar de o produto ser pouco conhecido, ele está no mercado mundial”, diz Rodrigues.
Por conta desse monopólio da Symrise na compra do alfa-bisabolol brasileiro, há uma deformação no mercado do produto, o que afeta toda a cadeia produtiva. “A Symrise acaba ditando o preço e as regras do mercado”, explica Ana Paula.
O preço da sustentabilidade
A empresa produtora de alfa-bisabolol, Atina, é a única empresa brasileira que tem certificação ambiental em todas as etapas da cadeia produtiva. O certificado Ecocert, por exemplo, que é aplicado a cerca de 3.200 produtores ligados ao extrativismo no Brasil e mais 8 mil no mundo, garante a origem e a qualidade do produto natural. Além disso, confirma que a empresa está cumprindo a legislação, a qual, no caso da candeia, é específica porque foi originada dos estudos da UFLA.
Outro certificado que a Atina possui é o do Conselho Brasileiro de Manejo Florestal (Forest Stewardship Council FSC Brasil), que é um certificado que vai além da exigência do cumprimento da lei e envolve um custo que supostamente o produtor não teria que assumir. “Segundo as regras do FSC, por exemplo, o produtor tem que ter água armazenada em volta da produção para evitar o risco de incêndio. A legislação brasileira não o obriga a ter isso, então esse produtor tem que assumir o custo por conta dele”, explica Veiga.
“Ser certificado gera custos. Então, como competir em um mercado desleal, no qual as outras empresas violam os limites e as regras de extração?”, questiona Rodrigues. A Symrise, por exemplo, compra o alfa-bisabolol das outras empresas brasileiras, que vendem o produto mais barato porque não têm os mesmos custos de produção que a Atina. Desde 2009, a Atina deixou de vender para a Symrise por desacordo com o nível de preços oferecidos pela multinacional.
Uma vez que os grandes compradores não exigem que seus fornecedores tenham certificados ambientais, não há um incentivo que faça com que a produção do alfa-bisabolol siga à risca a regulamentação imposta. A Natura, cliente da Atina, é a única que paga um valor duas vezes maior pelo produto porque leva em conta o custo adicional da produção regularizada.
Quebrar o monopólio exercido pela Symrise e vender o alfa-bisabolol diretamente para as indústrias de cosméticos é um desafio para Atina por causa de seus preços elevados e também porque a empresa alemã já tem acordos bem estabelecidos no mercado. “A Atina não consegue ganhar mercado e ser mais valorizada por ser sustentável”, diz Ana Paula.
Sendo assim, a certificação ambiental não resolve o problema da extração ilegal porque o mercado não estimula o manejo sustentável da árvore. A demanda internacional pelo produto abre espaço para irregularidades, ou seja, a forma de atuação de empresas como a Symrise dificulta o cumprimento da legislação.
“Pela quantidade de óleo que circula no mercado, se faz o cálculo de quanta madeira foi retirada e a partir daí se verifica se o limite de extração foi respeitado ou não”, explica Rodrigues. Esses cálculos, realizados pelos pesquisadores, têm mostrado que a candeia é mais explorada do que o permitido. “Existe um ‘buraco’ que não nos permitiu identificar a origem do alfa-bisabolol disponível no mercado”, diz Veiga.
Para Veiga, é aí que se coloca uma das grandes questões da pesquisa. “Será que é possível que as empresas tenham um papel no sentido de melhorar as condições ambientais e sociais de toda a cadeia produtiva?”.
Alerta
Os dados adquiridos na pesquisa são suficientes para provar que a cadeia de produção do alfa-bisabolol não é sustentável. No entanto, é difícil provar de onde vem a extração ilegal porque os pesquisadores não tiveram acesso a documentos oficiais das empresas com números sobre a quantidade de produção. As informações existentes são apenas médias gerais do total produzido por todas as empresas juntas.
Veiga explica que o objetivo do estudo é “denunciar a deformação no mercado do alfa-bisabolol e disponibilizar informação para mostrar o que está acontecendo e para que o consumidor final saiba que compra um produto florestal”.
Para Rodrigues, a pressão para que a cadeia se torne sustentável poderia vir do consumidor final ou até mesmo das empresas produtoras. Porém, no modo como se configura o mercado do alfa-bisabolol, essa pressão cabe mais ao próprio mercado.
A Symrise, como principal distribuidora do produto, tem a grande responsabilidade de suportar a cadeia sustentável. “No fundo, em qualquer cadeia que se estude, essas grandes empresas são a parte que tem o potencial para estimular mudanças”, diz Ana Paula. Hoje este papel está nas mãos de empresas cosméticas que trabalham de forma transparente e responsável.
Ao comprar alfa-bisabolol de empresas sem exigir a comprovação da origem do produto, a distribuidora alemã estimula a não sustentabilidade da cadeia. Não há interesse em comprar o produto com certificação, o que obrigaria as empresas a se adaptarem, porque o preço aumentaria.
“O alfa-bisabolol tem tudo para ser um produto florestal de alto valor, mas as empresas não querem porque isso vai custar mais pra elas”, diz Veiga. “O caso da candeia é emblemático para questionar em que medida os mercados geram incentivo na cadeia produtiva pra sustentabilidade”, completa Rodrigues.