São Paulo (AUN - USP) - A abstenção do Brasil na votação da ONU, em que foi aprovada a interferência militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Líbia, provocou um afastamento entre o País e o Conselho Nacional de Transição (CNT), entidade organizada pelos rebeldes, que assumiu o controle de Trípoli, e já é reconhecida por grandes potências mundiais.
O Brasil, que aguarda o posicionamento de países da Liga Árabe e da União Africana, por considerar que ambos têm mais propriedade para opinar sobre a região, foi questionado pela imprensa e formadores de opinião pelas atitudes do Planalto nas relações internacionais com a Líbia, porém, a professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, cientista política e diretora do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI), explica que não há ambiguidade na diplomacia brasileira, pois, segundo ela, segue uma das teorias mais clássicas das relações internacionais: o princípio da não intervenção. “Cabe aos países atuar nesta mudança, ou cabe a eles esperar que as forças internas mudem e eles se relacionem de outra maneira? Este é um debate que ainda não está claro”, questiona a professora.
Maria Hermínia explica que tradicionalmente o Brasil não segue um alinhamento automático com as grandes potências (com exceção de três momentos na história do Brasil: final da Segunda Guerra Mundial, em 1942, entre os períodos de 1943 a 1947 e logo depois do golpe de 1964), e normalmente toma decisões de forma autônoma. A não-sincronia na tomada de decisões com países como EUA e Inglaterra, que já reconhecerem o CNT no poder, a fim de pressionar a saída do ditador Muamar Kadafi, gerou estranhamento, mas a docente ressalta que outros países também não reconheceram o novo Estado líbio. “Eles estão esperando para ver quem é o novo governo. Neste caso, em um processo de guerra civil, obviamente o governo deve reconhecer. Eles estão aguardando, mas por enquanto não tem governo”.
Diante de um novo cenário internacional, em que países considerados “intermediários”, como o Brasil e o Canadá, têm possibilidades de ascenderem como protagonistas, a diplomacia brasileira adquiriu um caráter mais atuante, principalmente durante o governo de Lula. Desde a posse da presidente Dilma Rousseff, a diplomacia adotou um tom mais sóbrio, em contraposição ao jeito mais “estridente” do antecessor, segundo a professora. Dilma não assumiu para si a carreira de diplomacia presidencial, como o Lula, portanto a figura centra-se no ministro Antonio Patriota. Entretanto, ela ressalta que a diplomacia brasileira tem traços permanentes, como o “não alinhamento automático com as potências”, e a ideia de que países intermediários normalmente assumem papéis de negociadores em conflitos externos, como a literatura especialista deste assunto aponta.
Segundo a professora, o Brasil vive um momento inédito e sem precedentes na história, e, portanto, precisa “calibrar” a melhor forma de atuar neste cenário. “Durante o governo Lula, na tentativa de se situar diante de um contexto que abria mais espaço para o protagonismo brasileiro, o Brasil experimentou, às vezes deu certo, outras vezes não”, relembrando as intervenções no Haiti e em Honduras. Para ela, a participação do Brasil nestes casos era natural e esperada, pois é a zona de influência do país.
Já em relação ao polêmico envolvimento do Brasil com os países do Oriente Médio, como o Irã e a própria Líbia, com os quais mantém boas relações comerciais, Maria Hermínia desmonta o argumento do “conflito ético” da relação com países que desrespeitam os direitos humanos, com uma pergunta: “Que país não faz isso?”, indaga. “Isso é um dos princípios mais clássicos das relações internacionais e da diplomacia, o principio da não-intervenção. O problema é que nos últimos 20 anos, os direitos humanos entraram para a agenda internacional, e isso complicou de forma significativa esta lógica das relações internacionais, que envolve o relacionamento com Estados, e não de como eles se organizam internamente”. Para ela, caberia às organizações internacionais, como a ONU, intervir nestes casos, pois têm valores que estão acima do valor dos Estados, que é o direito à vida dos cidadãos. Mesmo assim, este debate é delicado, pois não há um manual para se determinar quando deve haver uma intervenção.
Dentro da reestruturação do cenário internacional, em que novos países tornam-se autônomos, e novas espaços se abrem para atuação de países intermediários, o maior desafio do Brasil é dosar sua atuação externa “sem achar que você virou super importante, e ao mesmo tempo sem timidez para exercer um papel”, diz a diretora do IRI. “O desafio é saber o que efetivamente pode reforçar o protagonismo brasileiro e o que pode desmoralizá-lo”.