São Paulo (AUN - USP) - Os alunos do primeiro ano de psicologia da Universidade de São Paulo têm aulas na parte da manhã, mas a cada 15 dias faz parte de suas obrigações comparecer ao auditório do Instituto de Psicologia da USP (IP) para assistir a um filme. A presença é computada e, após a exibição do longa, organiza-se um debate sobre os temas suscitados por ele. O projeto Cinema e Psicanálise está inserido na disciplina “Introdução à Psicanálise: Freud” – ministrada aos ingressantes do curso de psicologia – e já está em sua terceira edição.
Há três anos a professora Isabel Cristina Gomes, juntamente com duas monitoras do PAE (Programa de Aperfeiçoamento de Ensino), vinculadas à disciplina que ela leciona na graduação, criaram o projeto como uma maneira de verificar na prática conceitos aprendidos em sala de aula sobre a psicanálise freudiana, mais a título de incitar idéias e discussões do que de verificar a realidade, visto que obras cinematográficas também têm sua limitação com relação a esta. O evento compõe nota na disciplina dos calouros, mas é também aberto ao público.
Quem conduz os debates são orientandos escolhidos pelos professores responsáveis. No 2º semestre de 2011, os convidados foram o doutorando Daniel Vitorello e os mestrandos Lucas Bulamah e Laura Fernandes Merli, todos do IP. São cinco encontros programados e o último já realizado exibiu o longa “Sonhos”, de Akira Kurosawa, para abordar a Teoria dos Sonhos freudiana. O filme japonês é de 1990 e concorreu ao Oscar de melhor fotografia.
Na história são contados oito sonhos um tanto quanto biográficos e repletos de representações da cultura e mitologia nipônicas. Existe uma ordem cronológica e, à medida que o personagem que sonha cresce, seus sonhos vão abandonando a fantasia – nunca totalmente, senão não seriam mais ‘sonhos’ – e mostrando preocupações que giram em torno da sobrevivência: acidentes nucleares, guerras, miséria do planeta. “A ideia da morte está presente o tempo todo na obra e no final o personagem parece se reconciliar com ela”, diz Lucas, que também faz questão de frisar a limitação de uma obra cinematográfica para representar conceitos freudianos.
Apesar disso, a sessão permite que surjam diversas leituras e releituras da obra durante o debate, tal qual sucede em uma consulta, em que cada terapeuta terá uma observação diferente a fazer sobre a história ou sonho contados por seus pacientes. Laura discorre: “Dentro da sessão você não terá tempo de trabalhar todos os conteúdos, então uma escolha deve ser feita e cada terapeuta faz a sua”.
Outro ponto levantado no debate é o de que, simplificando bastante a teoria de Freud, um sonho não pode ser analisado separadamente das associações que o fizeram surgir. Ou seja, somente aquele que sonhou poderá dizer com veracidade o que cada aspecto de seu sonho representaria. “Cada sonho traz em si uma fase da vida da pessoa que tem uma característica muito específica”, completa Lucas, ratificando Freud quando ele afirma que o sonho tem sempre algo a dizer sobre a pessoa. Neste sentido, apesar de contar com representações culturais, os sonhos seriam um campo bastante subjetivo e individual.
A pessoa poderá entender as associações de seu próprio sonho, mas não necessariamente o irá, pois o sonho é uma das formas mais legítimas e conhecidas de expressão do inconsciente, também segundo Freud. A função do sonho é proteger e manter o sono e seu mecanismo para isso é a realização disfarçada de desejos, através da atuação do inconsciente. Tais desejos são recalcados porque a sociedade não os permitiu morar na consciência devido a implicações sócio-culturais. Assim, por meio de um processo chamado de deslocamento, o sonho acha uma maneira de realizar tais vontades reprimidas – e ‘vontade’ não é um bom termo, pois este desejo passa longe da consciência, portanto, vontade, do indivíduo.
Para que se realize tal deslocamento faz-se muito uso dos aspectos culturais de cada povo, com seus simbolismos fortemente marcados nos sonhos. Quanto não há o deslocamento e o objeto de desejo está no sonho representado tal como ele é, constitui-se o pesadelo, que é uma defesa do corpo contra algo que não era para estar ocorrendo: a saciação do desejo recalcado. A reprovação gera, então, a angústia.
Vários outros apontamentos foram feitos por orientandos e alunos nessa “aula diferente”, que tem se mostrado uma iniciativa eficiente e promissora do IP. Há ainda dois encontros a se realizarem neste semestre. O próximo será sobre o famoso “Complexo de Édipo”. Serão nos dias 20 de outubro e 3 de novembro, sempre uma quinta-feira, às 14 horas, no Bloco B do Instituto.