São Paulo (AUN - USP) - O debate a respeito da criação de um Estado soberano para os palestinos reacendeu após o líder da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, apresentar uma proposta para a Organização das Nações Unidas (ONU), durante a 66ª Assembleia-Geral. Professores do Instituto de Relações Internacionais (IRI) comentaram a proposta sob a perspectiva jurídica, política e histórica.
Pedro Dallari, que leciona Direito Internacional na USP, acredita que o reconhecimento do Estado palestino já foi aceito diplomaticamente pela maioria dos países, dentro das fronteiras estabelecidas após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, inclusive pelo Brasil. O impedimento nesta questão não é do ponto de vista político, mas sim do operacional. “Do operacional, não ocorrerá, porque no Conselho de Segurança (CS) pode sofrer veto”. Ele explica que para ser aprovada, a proposta tem que receber nove de 15 votos (dos países rotativos), e só prevalecerá se nenhum dos cinco países permanentes vetar. Os EUA já declararam que irão vetar a proposta no CS, mas o fato de estarem isolados no Conselho, segundo Dallari, é um fator de pressão no país.
Entretanto, para o professor Peter Demant, responsável pela área do Oriente Médio no Gacint-IRI e co-coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia (LEA) na FFLCH, é necessário “distinguir um Estado de verdade de um Estado virtual”. Demant afirma que as negociações entre os dois países seria a melhor forma de aceitação, especialmente por questões territoriais, e a solução de dois estados é a única viável para a resolução do conflito. Porém, o fato de existir uma proposta de Abbas na ONU já representa um avanço na solução de dois Estados.
Dallari explica que, mesmo sem o estabelecimento de fronteiras específicas, por meio de negociações, e a limitação de instituições políticas consolidadas, ainda é possível que a Palestina seja reconhecida na ONU, segundo a jurisdição internacional. “Dificuldades dentro do Estado não invalidam as prerrogativas políticas e jurídicas. [as dificuldades institucionais] não impedem que a Palestina se torne um estado na ONU”, afirmou o professor do IRI, rememorando, a título de exemplo, o caso do Haiti, “que enfrentava uma situação precária institucionalmente” e mesmo assim foi integrado à Organização.
Peter Demant ressalta, porém, que caso o pedido de Abbas fosse aceito na ONU, pouco mudaria na realidade dos palestinos. Além da oposição dos EUA no Conselho e de Israel, outros fatores são agravantes para a proposta realizada na ONU.
Um Estado palestino não é respaldado por uma parte da população mais radical que rejeita o reconhecimento da legitimidade do Estado de Israel e das negociações de paz – aceitar a proposta de um Estado dentro das fronteiras de 1967 implicitamente significa reconhecer o Estado de Israel. O antagonismo entre as duas organizações políticas e militares palestinas, Hamas (listado como organização terrorista por EUA, UE, Israel) e Fatah, impede que se apresentem como um Estado unificado perante a ONU e restringe ao líder da Autoridade Palestina apenas o controle sobre sua área de influência, a Cisjordânia. Esta região representa uma pequena porcentagem do que seria o futuro território palestino, já reduzido em relação à Palestina histórica, da época do mandato britânico. “Abbas decidiu apostar na ONU, pelo menos para colocar o assunto de novo na agenda internacional”, considera Demant.
O professor explica que os palestinos ainda são dependentes econômica e militarmente de Israel, e por isso, a aceitação do Estado sem negociações entre as partes, poderia provocar um enrijecimento nas relações. A mudança efetiva de postura não seria muito diferente da atual, segundo o professor, mas a atenção midiática dada ao tema “representa um ganho propagandístico para os palestinos, para não serem esquecidos”.
Histórico
As conturbadas relações entre os povos palestino e judeu datam de mais de um século- na realidade desde a Antiguidade, passando por diversos contextos históricos. Ambos reclamam a posse do mesmo território, o que torna o conflito primeiramente uma questão nacional, mesmo que o discurso religioso seja uma das razões apresentadas por ambos os lados. Na visão de Demant, são reivindicações legítimas. “Ambos os lados olham para o território do outro como ‘isto pertence a mim’. O trágico é que ambos têm razão”.
O pesquisador explica que atualmente existe uma “desconfiança’ por parte dos israelenses em negociar com os árabes, pois Israel acredita que não são “negócios políticos sérios”. “Por muito tempo, o lado judaico-sionista foi mais aberto a concessões para chegar a um acordo”. Em ofertas anteriores, como as feitas durante a Cúpula de Camp David, em 2000, para Yasser Arafat, representariam um país maior do que a as fronteiras apresentadas na ONU, porém Arafat recusou a proposta. Com isso, o professor acrescenta que “cresceu uma arrogância por parte de Israel, que pensa: ‘nós podemos e eles são incapazes’”.
Israel não enxerga os árabes como um “parceiro político” confiável devido a ataques terroristas promovidos pelo braço armado do Hamas ou Hezbollah (Líbano). Em contrapartida, os árabes, e especificamente os palestinos, ressentem a política de “judaização” do território. Mesmo aqueles dispostos a aceitar a existência de Israel rejeitam a expansão dos assentamentos judaicos em territórios que seriam destinados a seu futuro país.
Sobre os assentamentos, o professor Demant aponta alguns motivos, mas ressalta que extremistas “seqüestram a política israelense e isto simplesmente inviabiliza um acordo com os palestinos”. Primeiramente, a colonização é empreendida como uma política de “preenchimento” demográfico, que justificaria futuramente a ocupação e soberania judaica na região. Há também um fator estratégico-militar, em que os assentamentos teriam o objetivo de proteger fronteiras vulneráveis, como a do oeste da Cisjordânia, de ataques árabes, por exemplo, à cidade de Tel-Aviv. Outro fator determinante é a pressão demográfica exercida pela proliferação dos ultra-ortodoxos.
Os colonos, que muitas vezes são sionistas religiosos, têm uma visão messiânica da História e recusam-se a negociar “pedaços” do território, pois os consideram inalienáveis da “Terra Prometida”. Na prática, eles exercem uma maior pressão sobre o governo e sobre as terras e casas nas regiões que futuramente seriam palestinas.
Os sionistas radicais ultrapassam as linhas de cessar-fogo estabelecidas nas fronteiras após a guerra de 1967, diminuindo, assim, o território palestino. “Quando se faz isso no deserto de Judeia, por exemplo, eles que já ficariam com 1/5 do território da Palestina histórica, perderiam ainda mais território e que no futuro poderia ser economicamente desenvolvido, mesmo que seja deserto”
Início das negociações
Recentemente, as autoridades israelenses aceitaram uma proposta feita por membros do Quarteto, integrados pela ONU, EUA, UE e Rússia, a fim de retomar as negociações de paz com os palestinos. Pouco antes de aceitar a proposta, o primeiro-ministro de Israel autorizou a construção de mais 1.100 imóveis em um bairro no sul de Jerusalém, região ocupada na Guerra dos Seis Dias, de 1967.
Os palestinos só aceitarão voltar à mesa de negociações caso Israel congele a política de expansão de assentamentos. Já os israelenses permanecem desconfiados de um acordo político com organizações que deslegitimam a existência de um Estado judaico no mesmo território.
As negociações para o processo de paz, congeladas há três anos, começam a ser novamente vislumbradas como uma oportunidade para fazer valer a prerrogativa palestina, aproveitando a tentativa de Abbas na ONU.
O Brasil, neste ínterim, já se colocou como um potencial país mediador a fim de promover o debate. Esta atitude, porém, é vista com desconfiança por Israel, pois o Brasil já demonstrou forte identificação com a causa palestina. “A primeira lição da diplomacia, se você quer mediar, você precisa de certa neutralidade para ser aceitável e crível para ambos os lados entra os quais você vai negociar”, explica Demant. “O Brasil já se provou tão identificado com um dos dois lados que seria provavelmente inviável, o que é uma pena, pois o Brasil tem coisas a contribuir”.
Apesar de considerar a mediação internacional ineficaz até o momento, o professor Peter Demant acredita que o pedido de Abbas na ONU, apesar de não ser ideal, é um ponto de partida em direção a um desfecho viável para ambos os lados.