São Paulo (AUN - USP) - Em seminário organizado pelo Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP, realizado na última terça-feira, a jornalista Priscila Siqueira discorreu sobre o tema do tráfico de pessoas, abordando sua função no turismo sexual, que alicia, em especial, meninas menores de idade. Priscila é articuladora da ONG Serviço à Mulher Marginalizada (SMM) e pesquisadora da área de tráfico de pessoas e exploração sexual feminina, além de autora do estudo “Tráfico de Mulheres: oferta, demanda e impunidade”. Ela abriu o seminário com a afirmação de que o tráfico de seres humanos é uma realidade do mundo globalizado e que, segundo a ONU, é considerado o pior desrespeito aos direitos inalienáveis dos cidadãos. A jornalista compara o indivíduo traficado com os mendigos que vemos diariamente nas ruas, mas que tentamos não olhar. Ou seja, ele perde sua identidade – e isso é fatal estando-se em outro país – e é coisificado, transformado em mera mercadoria.
Priscila citou os usos mais comuns dados às pessoas traficadas, que são a escravidão, o tráfico de órgãos e a exploração sexual, e sua fala abordou esta última com mais detalhes. A jornalista ofereceu algumas estatísticas importantes: aproximadamente 82% do tráfico de pessoas com vistas à manutenção da indústria do sexo incide sobre o gênero feminino, sobre mulheres e crianças; apesar de que o índice tem aumentado com relação aos meninos. O outro dado é que o Brasil lidera o ranking das Américas que diz respeito ao envio de mulheres para a exploração sexual em países do Primeiro Mundo. Além disso, há ainda a questão do tráfico interno. Belo Monte, por exemplo, está recebendo muitas crianças destinadas à exploração sexual, pontua Priscila.
O comércio de seres humanos tem um histórico extenso, indo desde o tráfico negreiro voltado à escravidão, até o de mulheres brancas, durante o século 20, trazidas do leste europeu para se prostituírem nos bordéis de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo. A característica nova neste cenário, diz Priscila, é a globalização, responsável por organizar toda uma rede de atuação para que o turismo sexual seja cada vez mais rentável. “É como se fosse uma linha de montagem mesmo, em grande, média e pequena escala. Alguém alicia as meninas, arranja passaporte, dá uma roupa bonitinha e US$ 1.000 para elas passarem na alfândega. Chegando a Portugal e, principalmente, Espanha – que são os grandes destinos das nossas meninas –, há outro alguém para pegá-las e levar para os bordeis, onde aquelas meninas – que são crianças apenas! – se prostituirão incessantemente e em condições desumanas. E todos lucram, lucram muito com esse comércio sexual!”, conta a pesquisadora.
Um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) do ano de 2009 (feito em cima de algumas projeções) ratifica o imenso lucro: a venda de seres humanos rende anualmente quase US$ 32 bilhões. A atividade é mais lucrativa do que comercializar drogas, por exemplo. “E é mais fácil também porque a vítima às vezes não tem nem consciência de que foi vendida, ou tem medo de fazer uma denúncia. Existe uma grande impunidade em relação ao tráfico de pessoas”, complementa Priscila. Ela comenta o caso de um cafetão canadense que deu testemunho para uma revista, dizendo: “Prefiro mil vezes vender mulher a vender droga ou arma, porque ela a gente vende e revende até morrer de aids, ficar louca ou se matar; a droga e a arma é uma vez só”.
Todo o seminário do Nupri foi, no mínimo, impactante. As meninas traficadas, que por vezes nem sequer entraram na puberdade, vivem em condições degradantes e insalubres, vinculadas a seus cafetões por questões de dívida, perda da identidade em país estrangeiro, entre outros fatores. Elas chegam a receber homens de até 20 em 20 minutos para arcar com o montante de dívida que têm para com seus aliciadores. Essa dívida é relativa às primeiras despesas (de passaporte, roupas, passagem) e, somente para custeá-las, serão precisas cerca de 4.500 relações sexuais, de acordo com estudos. E enquanto a menina está presa àquele bordel, ela vive e se alimenta ali, além de consumir alguns produtos básicos, o que só faz aumentar seu débito, em um círculo vicioso que parece não terminar nunca. “É o mesmo processo que ocorre com o homem que trabalha na fazenda e compra no armazém do dono das terras”, exemplifica a jornalista Priscila Siqueira.
O tráfico de pessoas, seja para quais fins forem, constitui um crime de proporções internacionais, arraigado na atual dinâmica capitalista da sociedade. Existe um vislumbre de melhora da situação – apesar de Priscila, depois de tantos anos de dedicação ao tema, já se considerar cética quanto a isto –, caso a questão seja pensada e tratada em nível global, com esforços conjuntos dos governos, sociedade e instituições privadas de todo o mundo. “Turismo sexual, prostituição, não é o mesmo do que tráfico de pessoas, mas é uma porta para isso. O tráfico, para mim, nada mais é do que a ponta do iceberg. É um problema policial, sim, mas não é só com a polícia que irá se resolver. É um processo civilizatório que se instaurou em nossa sociedade, um processo que se pauta no lucro e que é difícil de mudar”.