São Paulo (AUN - USP) - Em pleno século 21, o tráfico de pessoas ainda é uma realidade. O assunto, infelizmente, não conta com a merecida divulgação, de modo que causa espanto revelar que o Brasil é um dos países da América com maior incidência de casos dessa natureza.
A fim de ampliar as discussões sobre o tema, o grupo de estudos Gênero, Mulheres e Temas Transnacionais (GEMTTRA), integrante do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP (Nupri) está organizando uma série de seminários sobre temas transnacionais, coordenada pela pesquisadora Maria Quintero, que deve ter continuidade em março do ano que vem.
O primeiro deles, ocorrido em outubro, tratava da questão do tráfico de pessoas voltado para a exploração sexual comercial. “Onde o Estado não está presente, a criminalidade é maior”, ressalta o jornalista Mauri König, convidado para falar no seminário. Entre 2004 e 2005 ele percorreu 28 mil quilômetros de fronteira do Brasil com objetivo de investigar o tráfico de pessoas e presenciou situações que evidenciavam a falta de preparo das autoridades atuantes em tais regiões, fator que dificulta a identificação e punição desse tipo de crime.
Para o jornalista, as fronteiras são regiões que facilitam esse tipo de ação porque os países atuam de forma muito individual, sem se unir para erradicar um problema comum. “Há um tráfico de pessoas muito intenso porque as fronteiras do Brasil são pouco controladas. Com exceção das fronteiras com a Argentina, país no qual o controle migratório é muito forte. Então quando as redes de exploração se deparam com uma região difícil elas vão pra uma mais fácil”, diz.
Despreparo das autoridades
Em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, adolescentes brasileiras de diversas partes do país são traficadas para bordéis do Paraguai e, depois de cerca de 5 a 7 meses são mandadas de volta ao Brasil, carregando maconha ou cocaína. “Quando elas eram pegas pela policia, eles faziam registro de trafico de drogas, mas não notavam a dupla exploração, o histórico anterior”, lamenta Mauri. “É como se esse segundo crime, que foi a razão primeira delas terem sido levadas, não existisse”.
Outro caso representativo da falta de preparo da polícia nessas regiões ocorreu na fronteira entre Rondônia e Bolívia. Um madeireiro que exercia desmate ilegal explorava sexualmente – e o mesmo faziam seus empregados – uma menina de 12 anos, filha da cozinheira do acampamento. Ele foi autuado pela polícia, mas apenas pelo crime ambiental. “Não teve implicação nenhuma para ele o fato de estar explorando sexualmente a menina”, critica o jornalista.
Rotina
Para realizar a reportagem, Mauri, juntamente com fotógrafo Albari Rosa, percorreu a fronteira do país de Chuí, no Rio Grande do Sul a Oiapoque, no extremo norte do Amapá, ficando em média de três dias a uma semana em cada local. Durante o dia ele entrevistava as fontes oficiais, como ONGs, polícia local e pessoas ligadas à proteção da criança e do adolescente. À noite investigava pontos de prostituição, pois é onde há maior probabilidade de exploração sexual de menores. “A gente procurava agir como Gay Talese [renomado jornalista, conhecido por incorporar características literárias às reportagens]. Ele dizia que o jornalista tem que ser ‘a fly on the wall’ [‘uma mosca na parede’], sem interferir no ambiente para não atrapalhar as relações naturais. A gente se infiltrou como clientes e conseguimos muitas informações”, conta Mauri. O trabalho era árduo: “trabalhávamos no mínimo 16 horas por dia, tanto nas entrevistas formais quanto à noite”.
Além das investigações, ele também entrevistou estudiosos de cada região, para ajudar a construir um perfil de cada local, uma vez que o tempo de estadia era limitado.
O limite do jornalismo
Um caso vivenciado por Mauri e Albari durante o período de apuração da reportagem levantou questionamentos jornalísticos entre eles.
Em Ciudad del Este, cidade paraguaia que faz fronteira com Foz do Iguaçu, encontraram uma menina de 14 anos, a qual deram o nome fictício de Pâmela. Ela trabalhava em uma barraca de espetinhos e, com um pouco de conversa, soube-se que era explorada pelos pais, que a obrigaram a realizar programas sexuais. A surpresa da equipe foi ainda maior quando descobriram que havia uma menina menor nos fundos da barraca de espetinhos. Serena (outro nome fictício) era explorada por Pâmela, que contou que a mais nova havia acabado de retornar de um programa com 3 homens, revelando a existência de uma cadeia de exploração.
Na manhã seguinte eles estavam à porta da coordenadora do Codemi, órgão paraguaio equivalente ao Conselho Tutelar no Brasil. Apesar de ter informado que já havia sido realizada uma tentativa de resgatar Serena, a coordenadora, Romilda, mobilizou a polícia para que a noite seguinte fosse feito o resgate. “Ela tentou fugir, mas foi pega e levada a um abrigo, para receber tratamento médico e psicológico”, conta Mauri.
Olhando em retrospectiva, Mauri revela que tal atitude levou-os a se questionar sobre a função do próprio jornalismo. “Nós refletimos muito e chegamos à conclusão de que esse não era nosso papel, nos éramos jornalistas e a nossa função primeira era denunciar esse tipo de situação, mas não intervir dessa forma. Foi o único momento em que a gente interveio em uma situação com a qual nos deparamos”.
Os frutos do trabalho
A jornada pelas fronteiras do Brasil rendeu uma serie de reportagens especiais para o jornal “Gazeta do Povo”, de Curitiba. Devido a elas, Mauri ganhou duas vezes o prêmio Esso, além de outros prêmios jornalísticos. Em 2008 as reportagens foram reunidas no livro “Narrativas de um correspondente de rua”, somadas a comentários redigidos por Mauri, sobre a maneira como construiu os trabalhos.