São Paulo (AUN - USP) - O autismo é uma doença de difícil tratamento e diagnóstico, pois suas causas não são definidas. Evidências como a recorrência de casos dentro de uma família levam a crer em uma origem genética, mas até hoje não se conhece uma causa comum a todos os pacientes que sofrem do transtorno.
Por meio do estudo do desenvolvimento neuronal de um paciente, a pesquisadora Karina Griesi, ligada ao Instituto de Biociências (IB) da USP, encontrou uma possível forma de tratamento alternativo para a síndrome: aplicar drogas que busquem normalizar as funções neuronais dos pacientes, dependendo da alteração que cada um apresente.
Quando Karina começou sua pesquisa, cinco anos atrás, o seqüenciamento do genoma ainda não era uma prática acessível. Atualmente, ela é utilizada por alguns pesquisadores, principalmente no exterior, mas nem seu uso levou a respostas concretas. Diante disso, ela escolheu analisar o cariótipo de alguns pacientes, buscando um que tivesse uma alteração genética visível.
Diferentemente do seqüenciamento do genoma, em que todos os genes do ser estudado são “lidos” para se identificar algum tipo de alteração, o cariótipo é como um esquema dos cromossomos do indivíduo, que permite observar apenas se a quantidade e tamanho estão adequados, ou se ocorreu alguma translocação cromossômica, que ocorre quando parte de dois cromossomos distintos se rompem e trocam de lugar entre si.
Os cromossomos são moléculas formadas por genes (unidades fundamentais que determinam as características hereditárias dos indivíduos) e pelos desertos gênicos, que são regiões onde não há genes, mas que tem funções regulatórias em relação aos genes próximos. Se o rompimento do cromossomo ocorre no lugar em que há um gene, ele não vai ser capaz de realizar sua função de forma adequada.
Neurônios in vitro
Dos três casos analisados por Karina em que havia pontos de quebra nos cromossomos, em um deles identificou-se o rompimento de um gene relacionado ao desenvolvimento neuronal. “O mais interessante é que esse gene nunca tinha sido relacionado ao autismo antes. E na mesma época em que identifiquei esse gene rompido, saíram trabalhos mostrando a importância que esse gene tinha para a neurogênese em camundongos”, conta a pesquisadora. Tais estudos mostravam que quando a expressão desse gene era aumentada, o neurônio ficava mais arborizado, ou seja, possuía maior quantidade de prolongamentos que servem para que ele se comunique com outras células.
“A ideia era testar se realmente esse gene estava prejudicando o desenvolvimento neuronal do paciente. Possivelmente, essas diferenças estruturais seriam visíveis. Só que, quando a gente identificou esse gene, ainda não havia uma maneira muito consolidada de produzir os neurônios desse paciente in vitro”, explica Karina.
A solução veio em 2008, com a publicação de um trabalho que mostrava que era possível reverter células da pele para um estado pluripotente, no qual elas poderiam dar origem a qualquer tipo de célula humana. Desse modo seria possível reconstituir e analisar os neurônios do paciente em questão, pois as células geradas têm as mesmas características das presentes no corpo da pessoa que forneceu as que seriam transformadas. Em outras palavras, se a técnica fosse utilizada com esse paciente, os neurônios obtidos seriam idênticos aos que ele possui.
Karina foi convidada para ir à Universidade de San Diego (UCSD), nos Estados Unidos, e lá aprendeu a executar a técnica. “Então foi essa a estratégia que a gente usou. Coletamos células desse paciente, no caso a gente não usou célula de pele, usamos da polpa do dente. Reprogramamos essas células e transformamos em neurônios”, afirma ela. “Quando fomos estudar essas células a gente observou que, realmente, os neurônios desse paciente tinham características diferentes das células normais. Também fizemos alguns experimentos para mostrar que de fato esse gene era responsável pelas alterações estruturais desses neurônios”.
Possibilidade de tratamento
O gene rompido, responsável pelas alterações neuronais do paciente, codifica um canal de cálcio nos neurônios. Como o paciente em questão possui uma das cópias desse gene normais e a outra rompida, ele tem menos desses canais do que o normal. Para tentar compensar essa deficiência, Karina optou pela estratégia de tentar fazer com que uma quantidade maior de cálcio circulasse pelas vias existentes, a invés de criar mais deles. “Como a gente conhece uma droga que age no local, aumentando a entrada da substância, essa foi a estratégia adotada. O que é mais interessante é que essa droga já é utilizada na medicina, ou seja, está disponível no mercado”, conta a pesquisadora. A ação da substância está sendo testada in vitro.
Aplicabilidade em outros casos
“Esse foi um primeiro trabalho, em cima de um paciente em específico que a gente conhecia a alteração, mas essa estratégia de reprogramar as células, conseguir fazer o neurônio, é interessante porque a gente pode tentar estudar pacientes autistas em que ainda não se consegue identificar uma causa genética”, ressalta Karina. Uma das idéias de continuidade da pesquisa é verificar se os pacientes autistas apresentam alterações comuns nos neurônios.
“Desse modo, é possível começar a buscar drogas que possam reverter esses problemas”, explica a pesquisadora.
Aconselhamento genético
A identificação das causas genéticas do autismo não pode ser prescindida, mesmo diante da possibilidade de outras formas de tratamento. Além do diagnóstico e tratamento da doença, ela é necessária para o aconselhamento genético das famílias. Isso porque se a causa da doença se encontra apenas em um dos gametas que originou a criança autista, o risco de que esses pais tenham outro filho portador do transtorno é o mesmo do que o de todos os outros casais de genoma considerado normal. Porém, se a alteração foi herdada do pai ou da mãe, o quadro é totalmente diferente.
Atualmente, no Centro de Estudos do Genoma Humano, do IB, são realizados três testes durante o aconselhamento genético, que buscam identificar as causas mais comuns da doença. O primeiro é o já mencionado cariótipo. O segundo teste busca identificar se o paciente possui a chamada síndrome do X frágil. “Trata-se de uma alteração em um gene que está no cromossomo X”, explica Karina. “Isso muda completamente seu aconselhamento genético”. Como essa deficiência vem da mãe, a chance de que ela tenha um filho homem com autismo é de 50%, pois esse gene não tem um correspondente do cromossomo Y que possa inibi-lo. “É importante fazer também o aconselhamento nas irmãs dessa mulher, pois elas podem ser portadoras da mesma deficiência, mas como elas têm os dois X elas não manifestam nada, não têm quadro clínico”, ressalta.
O terceiro teste é resultado de uma observação que teve início cerca de cinco anos atrás. “Nessa época começou-se a perceber pequenas deleções e duplicações nos cromossomos que não são possíveis de se verificar com o cariótipo, porque elas são muito pequenas e a resolução do cariótipo não permite enxergá-las. Mas existem técnicas com as quais a gente consegue ver isso”, conta Karina. Quando surgiram essas técnicas e foram feitos estudos com autistas, percebeu-se que uma quantidade significativa deles apresentava alterações em três regiões, dos cromossomos 15, 16 e 22. “Aqui no Genoma [Centro de Estudos do Genoma Humano], para todos os pacientes a gente oferece esse teste também, que se chama MLPA, e serve para verificar se o paciente tem duplicações ou deleções nessas três regiões”.
Caso não seja identificada nenhuma alteração nos exames do paciente, o risco de recorrência de doença que se passa para os casais é relativamente alto. “É um risco teórico, ou seja, de cada 100 casais que tem um filho autista, o que se observa na população (dos casais que tiveram outro filho) é que de 4% a 5% tem um segundo filho autista. Então esse é o risco que se estima quando não e possível identificar nenhuma causa”, conclui Karina.