São Paulo (AUN - USP) - Durante o verão dos anos de 2007 e 2008, o Brasil enfrentou uma situação atípica: os jornais alardearam uma epidemia de febre amarela, em oposição às informações das autoridades de saúde pública e da literatura médica. A pesquisadora Cláudia Malinverni, da Faculdade de Saúde Pública da USP, abordou esse assunto na sua dissertação de mestrado Epidemia midiática: um estudo sobre a construção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo sobre a febre amarela, no verão 2007-2008.
Ela explica que há dois tipos de ciclos da febre amarela, o silvestre e o urbano. Eles diferem quanto ao vetor (tipo de mosquito responsável pela transmissão da doença), o hospedeiro (macaco ou humano), e a área de ocorrência dos casos. Desde a década de 1940, o Brasil não enfrenta casos de febre amarela urbana.
No entanto, no final de 2007 e começo de 2008, a imprensa de um modo geral ignorou as informações das autoridades de saúde e da literatura epidemiológica, que explicaram, na época, que os casos da doença se encaixavam no ciclo silvestre normal.
Na sua pesquisa, Cláudia se limitou a analisar as publicações do jornal Folha de São Paulo: “Destaco que, ao longo de toda cobertura, o jornal publicou apenas um texto de opinião de especialista (um médico), a propósito contrário à tese de epidemia amarílica e de vacinação em massa, que era então o principal enquadramento da febre amarela no jornal”.
Além disso, ela também aponta que o discurso das autoridades de saúde foram relativizados, e perderam efetividade em alertar e informar a população. Por exemplo, ela cita o caso da capa do jornal do dia 14 de janeiro de 2008, que trazia uma matéria com o ministro da Saúde na época, José Temporão, afirmando que os brasileiros estavam livres de uma epidemia. No texto de abertura, porém, destacava: “No dia em que o número de notificações de casos suspeitos de febre amarela subiu de 15 para 24, o ministro José Gomes Temporão (Saúde) foi à TV fazer um pronunciamento em cadeia nacional para dizer que ‘não existe risco de epidemia’”.
“Esta relativização pode ter produzido no leitor leigo a ideia de que o ministro, logo, o próprio governo federal, recusava-se a aceitar um acontecimento que jornalisticamente parecia consumado: a febre amarela configurava-se como um evento indiscutivelmente epidêmico”, afirma a pesquisadora.
A cobertura jornalística dos eventos ligados à febre amarela destacava ainda que a única medida capaz de proteger a vida dos brasileiros era a vacinação. No entanto, esta causa diversos riscos e deve ser aplicada, segundo a literatura epidemiológica, somente para grupos de risco específicos.
Neste período, a vacinação indiscriminada levou a oito casos de reação adversa à vacina. Seis foram à óbito. Este número é muito semelhante aos registrados durante nove anos (oito casos e sete óbitos), de 1999 a 2007.
A dissertação foi defendida pela pesquisadora, que é jornalista de formação, no começo do ano. Ela aponta que “no caso da febre amarela, especificamente, os impactos da cobertura jornalística sobre o sistema público de saúde demandam uma discussão crítica sobre o papel do jornalismo generalista no campo da saúde, particularmente da saúde pública. A bandeira da liberdade de expressão, reconhecida e legitimada nas sociedades ocidentais como instrumento de cidadania, não pode servir de salvo conduto ao fazer jornalístico”.