São Paulo (AUN - USP) - Lendas urbanas surgidas na idade média ainda estão vivas no imaginário popular. Algumas dessas lendas podem ter origem na raiva, doença que ataca alguns mamíferos e é praticamente mortal para o ser humano. O professor Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP conta duas dessas lendas: o lobisomen e o vampiro.
Era comum na idade média lobos morderem as pessoas e transmitirem a raiva. A pessoa ficava agressiva, querendo morder as outras pessoas e com sensibilidade à luz – outra característica da doença – e criou-se a lenda de que essa pessoa estava se transformando em metade homem, metade lobo.
Outra história semelhante é a do vampiro. O infectado queria morder outras pessoas – normalmente atacando o pescoço – e tinha fotosensibilidade. Padres eram chamados para tentar curar a pessoa e a luz que refletia do crucifixo normalmente incomodava a pessoa com raiva, e por isso ela tinha uma reação adversa ao objeto. Começou a surgir a hipótese de um ser das trevas, e não de um doente apenas.
Parecido com isso, a água benta também causava reação no doente, pois num estágio da doença, a pessoa não consegue mais engolir por conta da paralisia causada pela raiva, e, portanto não bebe mais água. A sede da pessoa é transformada em euforia quando esta vê um copo de água e sabe que não consegue tomá-la. Associou-se a isso o medo da água e a doença ficou conhecida erroneamente como hidrofobia, o que segundo Brandão “é exatamente ao contrário, pois o doente quer a água e não consegue tomar”.
A doença
O Lyssavirus, causador da doença conhecida como raiva, faz cerca de 55 mil
vítimas por ano em todo o mundo. Mas segundo Brandão, esse número pode ser
muito maior, pela falta de constatação da doença como causa da morte.
Brandão alerta que nem mesmo os médicos conhecem mais profundamente a
doença, pela diminuição dos casos no país. Segundo o professor, a média “é
de dois casos anuais de raiva diagnosticados em humanos no Brasil”, quase
que totalmente nas regiões norte e nordeste. Existem alguns poucos projetos
de pesquisa sobre a cura da raiva, a maioria restrita às universidades, já
que é pouco rentável financeiramente para a indústria farmacêutica. Brandão
coordena um grupo de pesquisa na FMVZ que busca através de métodos
alternativos alcançar a cura da raiva.
Embora a letalidade da doença seja de praticamente 100%, há dois casos de cura comprovados no mundo, uma nos Estados Unidos e outra aqui no Brasil. Ambos os tratamentos foram iguais: diversos coquetéis de soro, como o de HIV, foram ministrados e praticamente não houve seqüela nos jovens – ambos tinham em torno de 16 anos.
A transmissão
A raiva é transmitida principalmente pela mordida de alguns mamíferos,
sendo cachorros, gatos e morcegos os transmissores mais comuns. O vírus é
transmitido na saliva do animal, que inicialmente se aloja na pele e na
musculatura e busca penetrar no sistema nervoso periférico, onde caminha
cerca de 10 cm/dia até atingir o Sistema Nervoso Central, seu último
destino. Ou seja, dependendo do lugar da mordida, a doença pode se
manifestar mais rápido ou mais lento. Brandão alerta para o caso de
mordidas na região facial, comum nas crianças. Neste caso, extremamente
perigoso, a doença pode se manifestar em poucos dias.
Existe ainda a infecção via respiratória, muito rara de acontecer. O professor explica que ela só acontece ''se um indivíduo entra numa caverna bastante fechada, que contenha diversos morcegos com raiva, o vírus estará em uma alta concentração no ar, sendo possível uma contaminação.”
Sintomas
Os primeiros sintomas são dores de cabeça e espasmos, seguido de convulsões
e paralisia motora. Essa paralisia afeta o esôfago e a laringe,
dificultando e posteriormente impedindo o movimento de deglutição, fazendo
com que o doente não consiga comer ou beber nada, inclusive sua própria
saliva, por isso a característica principal da raiva ser a salivação e baba
em excesso.
Outra característica marcante da doença é a agressividade aumentada. O vírus, controlando o sistema nervoso central, torna o indivíduo ou animal mais agressivo justamente para infectar outros seres e se espalhar em outros organismos. O professor comenta que já houve casos até de transmissão de raiva de humanos para humanos através de mordida, tamanho é o poder de controle nervoso do vírus no homem.
Tratamento
Uma pessoa mordida por um animal com suspeita de raiva, se agir
rapidamente, tem grandes chances de escapar da infecção. Lavar a região
mordida com água e sabão é o primeiro passo, e muitas vezes o vírus já é
eliminado apenas com esse processo. Mas ainda assim, é necessário se
dirigir a um posto de saúde para aplicação do soro anti-rábico no local da
mordida, procedimento parecido com o tratamento dado a uma pessoa mordida
por uma cobra peçonhenta quando recebe o soro anti-ofídico.
Se o soro for aplicado em até um ou dois dias após a mordida, feito o procedimento da lavagem, a chance de evitar o contágio é de praticamente 100%. O problema, segundo Brandão, “é que as pessoas só procuram tratamento muito tempo depois, quando o vírus já está no sistema nervoso e o soro não é capaz de removê-lo dali”. O tempo de vida de uma pessoa com raiva, cujos sintomas já se manifestaram, é de aproximadamente sete dias, apenas.